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Colunista 04/04/2017 23:34
Por: Marcos Rolim

Diante da barbárie

Desde o início do ano, os massacres em prisões do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte mobilizaram os noticiários e chamaram a atenção para o colapso do sistema prisional brasileiro. É comum que tragédias produzam esse efeito e já vivemos situações similares no Brasil envolvendo rebeliões e matanças em prisões, como a chacina do Carandiru, com 111 mortos, em 1992. A realidade das prisões brasileiras, entretanto, excluídos os momentos de crise aguda, não costuma suscitar qualquer interesse. No Brasil, aliás, a ampla maioria das pessoas imagina que os presídios devem, de fato, ser sucursais do inferno, afinal, lá estão os “bandidos”, uma turma que mereceria sofrer ou mesmo morrer.


Há duas notícias desagradáveis para o senso comum sobre prisões no Brasil. A primeira: quem imagina que os presídios brasileiros recebem os autores dos crimes mais graves não têm a menor ideia do que está falando. A segunda: o desinteresse e a demanda por vingança disseminados socialmente foram, exatamente, as circunstâncias que fizeram com que o Poder Público no Brasil transformasse as prisões em potentes máquinas de organização e reprodução do crime.

A grande maioria dos presos brasileiros é formada por condenados por crimes praticados sem violência real. O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, do Ministério da Justiça (disponível em https://goo.gl/bgyJla) mostra que, em dezembro de 2014, apenas 10% dos presos no País haviam sido condenados por homicídio. 41% eram condenados por furtos e roubos e 28%, por tráfico de drogas. No RS, os percentuais são ainda mais extremados. Dados de dezembro de 2012 mostravam que, no Presídio Central, em uma população de 4.024 presos, apenas 131 respondiam por homicídio (simples e qualificado), o que significa 3,2%. Já os acusados e condenados por tráfico de drogas eram 52,6% do total (disponível em: https://goo.gl/s8ZPo3).

Esses dados evidenciam que o Brasil prende muito e mal. Em números absolutos, temos a quarta população carcerária do mundo e, se contarmos os sentenciados à prisão domiciliar, a terceira. EUA, China e Rússia, entretanto, os primeiros no ranking do encarceramento, têm reduzido suas taxas, enquanto o Brasil afirma tendência inversa. Na realidade brasileira, os responsáveis pelos crimes mais graves (homicídios e estupros, destacadamente) não são, em regra, identificados pela polícia. O mesmo ocorre com sonegadores e corruptos, crimes praticados pelos mais ricos. Já os suspeitos de crimes banais - furto, roubo e tráfico - quase sempre jovens pobres, são abordados nas ruas por PMs e encaminhados às prisões sem julgamento. Atualmente, cerca de 40% dos presos brasileiros estão nessa situação, encarcerados por prisões cautelares. Pesquisa de 2012 do Núcleo de Estudos da Violência da USP (disponível em: https://goo.gl/lr2PdZ ) mostrou que 80,6% dos presos por tráfico em SP eram primários e que apenas 4% das prisões foram resultantes de investigação. Em quase todos os processos, as condenações foram obtidas apenas com base no depoimento dos policiais. Os acusados não têm defesa na fase do inquérito policial; são homens, jovens entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com escolaridade até o primeiro grau.


Sobre a escolaridade, aliás, sabe-se que 90% dos presos brasileiros têm menos que o ensino médio completo e 61%, menos que o fundamental completo. Jovens com baixa escolaridade também têm as mais altas taxas de vitimização por homicídios, que cai fortemente entre os que terminam o primeiro grau.


O que ocorre quando empilhamos esses jovens semialfabetizados em nossas prisões? A primeira coisa que se tem feito – já há muitos anos – é abrir as celas, de modo que os internos possam ser alojados também nos corredores. Ao encarcerar centenas de pessoas por galeria, o Poder Público abdica da execução penal. O espaço de contenção, ao invés de individual, passa a ser coletivo, o que obriga os gestores a separar os presos pelo critério de pertencimento às facções. Por essa dinâmica, o Estado se transformou no principal organizador do crime no Brasil. Os mais importantes e perigosos bandos criminais brasileiros foram formados dentro das nossas prisões, sendo o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) os dois exemplos mais conhecidos.


Os magistrados, os promotores, os governadores, os secretários de segurança, os parlamentares, todos têm sido alertados há décadas sobre essa dinâmica e sobre seus riscos. O que fez a grande maioria dessas autoridades ao longo de todos esses anos? Nada. E por que lhes foi possível nada fazer? Porque a opinião pública nunca lhes exigiu que fizessem algo. Pelo contrário, os políticos brasileiros sabem que qualquer investimento no sistema prisional que signifique assegurar uma execução penal decente e que esteja orientado pelos objetivos de integrar socialmente os apenados tende a ser rechaçado pela turma do “bandido bom é bandido morto”.


Diante da onda de violência, a demanda da opinião pública é, fortemente, a de mais prisões, o que se compreende pelo medo disseminado e pelas experiências traumatizantes de vitimização que se alastram. Diante disso, qual a resposta do Estado e de todos os partidos políticos que já estiveram no poder? Um esforço concentrado para prender mais e todo o foco dos gestores na abertura de novas vagas prisionais. A demanda condiciona não apenas o Executivo, mas todos os Poderes. Assim se compreende, por exemplo, porque as audiências de custódia – recentemente introduzidas no Brasil – transformam, em média, 53% dos conduzidos pela polícia em presos preventivos, enquanto, no RS, Estado afetado por uma enorme sensação de insegurança, 84% delas viram prisões cautelares (em SP e RJ, para se ter uma ideia, esses percentuais são, respectivamente, 48,7% e 59,4%).


Aos milhões de brasileiros pobres que passaram pelas prisões ao longo dos anos, não asseguramos trabalho nem estudo. O que reservamos a eles, mesmo após o cumprimento de suas sentenças, é o estigma, espécie de condenação perpétua pela qual todas as oportunidades lhes serão suprimidas; o que os empurra para alternativas ilegais de sobrevivência. Muito inteligentes nós somos.


Seguimos, assim, encantados com o mesmo; aparvalhados pelo medo e dispostos a aplaudir todo discurso que proponha aumentar a dose de uma receita que construiu não apenas um colossal fracasso, mas que empurrou o Brasil para os limites da barbárie.

(Texto publicado originalmente no Jornal da UFRGS, em março de 2017)