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Colunista 08/05/2017 08:28
Por: Wagner Azevedo

A Greve Geral: vandalismo e vagabundagem nas palavras de quem?

No último dia 28 de abril o Brasil celebrou ritualisticamente 100 anos da primeira Greve Geral fazendo a maior Greve Geral de sua história. O despertar da consciência da classe trabalhadora tende a aparecer nesses momentos. O trabalho cotidiano que exclui o homem e a mulher de sua humanidade, distanciando suas produções, sua força de trabalho e ação na história, daquilo que essencialmente são. A alienação do trabalho impede o reconhecimento da classe trabalhadora como sujeitos e agentes da História, e inclusive da própria história. A manutenção daquilo que já está posto, além de cômodo, torna-se discursivamente pacífico e produtivo nas vozes do status quo. O antônimo do trabalho, discursivamente, tornou-se o vandalismo e a preguiça. Diria Chico Buarque: “Pode esquecer a mulata, pode esquecer o bilhar, pode apertar a gravata. Vai te enforcar! Vai te entregar! Vai te estragar! Vai trabalhar! Vai trabalhar, vagabundo! ”.

O famoso bordão da dignificação do homem pelo trabalho sempre é ecoado e manifestado quando há algum movimento que se revolte ao que está posto. As relações políticas conduzidas a partir das forças econômicas na sociedade atual a cada dia estão mais expostas na mídia Não há dúvidas de que as manifestações repudiando a corrupção ou as ações judiciárias e legislativas são benéficas. Porém, inverter o problema da relação econômica à política denuncia apenas que a conveniência e a pacificidade conduzidas por essas forças propõem-se a manter a ordem hierárquica da sociedade. Isso é, culpamos o eleitor que vota no político corrupto, culpamos o político corrupto, porém dificilmente centralizamos o problema no âmbito privado, da empresa, da empreiteira condutora dos processos públicos. Assim como na greve, culpamos o trabalhador que contesta essa ordem, culpamos o governo submisso à ordem, e nos colocamos ao apoio da força condutora dessa dinâmica. A paralisação dos coletivos urbanos serve como um exemplo importante: o prejuízo da greve recai sobre a própria classe trabalhadora que não irá exercer seu direito de dignificar sua vida; ou então, sobre um governo que está cada dia com índices maiores de reprovação. Porém, pouco se considera que a manutenção da ordem ordena ao trabalhador gastar, em média, 7 reais do seu salário para se deslocar, e ao governo o serviço público para alavancar uma força externa. O primeiro problema é de consciência de classe; o segundo é da separação público-privada ao ponto que essas se excluem e não dialogam – esta discussão merece uma atenção maior, porém, pelo momento histórico convém se ater mais à primeira.

A preocupação latente ao prejuízo de “não trabalhar”, de “não dignificar” a vida, diretamente expõe o conflito entre grevista e não-grevistas. A causa do prejuízo neste caso é o grevista, logo, torna-se vândalo. Vandalizar é destruir os bens públicos. Pois bem, o vandalismo se dá com a paralisação ou a submissão do Estado e da classe trabalhadora à ordem empresarial? Um ônibus queimado custa mais que uma licitação fraudulenta? A quem interessa garantir a integridade de um presidente com 4% de aprovação enquanto violenta e atenta contra a vida de um estudante e trabalhador que segue há 10 dias em coma? Interessa manter vivo e ativo apenas quem governa e trabalha a favor da classe dominante. Interessa ditar além das políticas públicas, os valores do ser humano. Alienar-se da sua humanidade confunde-se com dignificar-se. Impedir a alienação, ir contrário à ela, é crime e penaliza-se até mesmo com morte.

O outro adjetivo conectado ao de vândalo, é de “vagabundo”. “Vândalos vagabundos”, “baderneiros vagabundos”, associa-se a ideia da perturbação a ideia de ócio, à preguiça, ao não fazer nada. Duplamente o grevista além de impedir a dignidade de determinados grupos, é a personificação da indignidade. Acordar no meio da madrugada para fazer piquete ou barricada é vagabundagem, passar dias, meses ou até mesmo anos em acampamentos e ocupação é preguiça. Entretanto, a quem possui e usufrui de privilégios, independente da qualidade ou contribuição dos seus serviços públicos, é permitido o direito de ser bon vivant ou hedonista. O processo da greve exige desgaste físico e psicológico por ordenar e possibilitar o corpo a fazer aquilo que lhe é impedido institucionalmente pelo Estado a favor do capital. O desgaste psicológico pela pressão dos próprios companheiros trabalhadores e a eminente ideia de se estar numa guerra, como o inimigo público, prestes a ser atacado.

Além do discurso em defesa da ordem a da alienação do trabalhador, não há nada que justifique e garanta a legitimidade da adjetivação dos grevistas como vândalos e vagabundos.

Feito esses apontamentos, é importante esclarecer que não cabe a ninguém defender a violência, venha do lado que vier, no momento e tempo de duração que vier. O importante nesta discussão é não ser presunçoso de ditar que a intolerância, a barbárie e o vandalismo partem apenas de um lado, em um ponto único da história. Por outro lado, cabe fazer tom ao já antigo, mas ainda necessário “Elogio ao ócio”, de Bertrand Russel. Ainda em 1932 o autor britânico pautava a necessidade do ócio – o que vulgarmente se chama de vagabundagem – para a classe trabalhadora, pois a classe dominante, burguesia e monarquia (no Reino Unido, aqui podemos considerar a tal “classe política”) já possuíam. Porém, ainda mais antigo, e mais esquecido, estão os pensamentos dos povos nativos da América. Entre as diferentes cosmologias dos povos adota-se como fator comum a plenitude da vida, a mobilização do Bem-Viver. A plenitude da vida não acontece apenas pelo fator econômico, pelo trabalho e pelo dinheiro. Mobilizar a vida em plenitude exige, entre muitas coisas, a alteridade, a percepção do Outro. A modernidade além de encobrir o Outro, dentro das suas próprias relações civilizacionais começou a se encobrir, principalmente ao trabalhador. Descortinar a sua vida e sua humanidade perpassa pelo caminho do capital. A racionalidade torna-se o meio único do conhecimento, da dignidade e do desenvolvimento. O Bem-Viver contraria isso tudo. O ser humano não é único no universo, a razão não é a única forma de apreender e entender a realidade, as relações não são unilaterais e o tempo não necessariamente é linear e progressivo. Deste modo, o trabalho não pode ser um ato que desumaniza, que propicia um desenvolvimento ordenado por uma classe privada, dominante, e imposto ao público e muito menos é o caminho da dignidade.

A nós será sempre necessário defender o direito de greve. Seja essa greve desgastante e tensa, seja a greve para o trabalhador usufruir do ócio. O vandalismo é apenas uma resposta aos atos cotidianos de violência que o trabalhador é posto. Enquanto houver a sobreposição de classes, haverá violência, independente de ser legalizada ou contrária à ordem. A consciência da classe trabalhadora apenas se desperta com o fim da alienação, de perceber no Outro um ser de direito pleno, assim como o seu. E isso acontece na barricada ou no prazer de se levar uma vida que intensifique tudo aquilo que se pode ser. Nesse caminho interno, oxalá possamos construir a unidade entre as classes, sem exploração e clientelismo por quem possui o poder de violentar e manipular as vidas.