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Colunista 22/03/2017 17:32
Por: Ângelo Savi

A banalidade do mal

Em 1961, a filósofa Hannah Arendt foi convidada pela revista New Yorker para fazer a cobertura jornalística do julgamento em Israel do nazista Adolf Eichmann. Eichmann era o funcionário incumbido pelo nazismo para organizar o transporte de prisioneiros para os campos de extermínio da Europa Oriental. Hannah Arendt concluiu que ele não era o monstro que todos queriam que fosse, mas um burocrata comum. Um servidor do estado que simplesmente cumpria suas funções, indiferente ao resultado. Ele próprio se via assim, sem sentir culpa alguma pelo que fizera. Daí a expressão “banalidade do mal”, proveniente do título do livro que Hannah Arendt escreveu sobre o julgamento: “Eichmann em Jerusalém. Um Relato Sobre a Banalidade do Mal”. Os artigos e o livro causaram comoção no público intelectual de Nova Iorque, que se voltou contra a filósofa como se ela estivesse desculpando Eichmann. Há um excelente filme sobre o episódio todo.

O que Hannah Arendt disse, em suma, é que o mal se instala quando o homem deixa de pensar por si mesmo e por isto abandona a sua humanidade passando a seguir a manada ou fazer o que lhe dizem para fazer sem nenhum senso crítico. E isto acontece porque pensar dá trabalho e seguir o fluxo não exige esforço. Além do mais, o que quer que se faça fica aparentemente justificado quando todos estão fazendo o mesmo.

Esta banalização do mal se disseminou no mundo e particularmente no Brasil. Em Vitória, durante o motim da polícia, pessoas comuns, assim como os bandidos, também saquearam. Partidos políticos justificam os próprios erros com os cometidos pelos outros. Bandidos se matam em ajuste de contas e a sociedade vê a matança como coisa boa, como se fosse uma limpeza, não se apercebendo que, se é fácil para bandido matar bandido, é mais fácil ainda que eles matem quem não é. Os privilégios e benefícios de políticos, autoridades públicas e da burocracia estatal são indecentes por eles mesmos, e mais ainda se comparados com a realidade de quem os sustenta, ou seja, o povo.

O que há de comum nas situações citadas é a indiferença: os saqueadores de Vitória, os políticos, os matadores e os burocratas não sentem remorso e pouco estão ligando para a censura que possa lhes ser feita, porque o desvio do certo se tornou comum e corriqueiro.

Qual a razão para termos chegado a esta situação? Fatos complexos não têm explicação simples. Resultam de infinitas causas e reduzi-las conduz, na melhor das hipóteses, a uma compreensão precária da realidade. De modo que para entender o porquê de estarmos vivendo tempos tão adversos exige enorme esforço de análise e compreensão. Mas isto não quer dizer que não se possa identificar isoladamente uma ou outra das muitas causas, sem pretensão de exaurir a questão.

Uma das mais relevantes é a orientação uníssona adotada pelos chamados formadores de opinião há três ou quatro décadas. É possível até encontrar uma data, que, apesar de arbitrária, pode simbolizar o início de tudo. Em 1968, houve uma espécie de levante mundial da juventude, com protestos no México, na Alemanha, Itália, Inglaterra, Espanha, Polônia, mas particularmente em Paris e também aqui no Brasil, embora no nosso caso tenha sido principalmente uma reação à ditadura militar. Foi a época do “é proibido proibir”. Iniciou-se como uma saudável irresignação contra a guerra, o racismo, armas nucleares e também contra o moralismo irracional e a rigidez de costumes e terminou como nova forma de ditadura. A revolta acabou amainando, mas os intelectuais que a lideraram viram frutificar a ideia que a fundamentava e era a da pura e simples destruição da sociedade para construir um novo mundo, sempre no futuro e por isto sempre intangível. Logo as redações, os meios de comunicação e as cátedras foram tomados de assalto por uma legião de tagarelas armados com meia dúzia de slogans, conceitos pré-fabricados e frases prontas que passaram a despejar diuturnamente sobre a população. Os mantras adotados são o da relativização da história e dos fatos; a vitimização de minorias indiscriminadamente; a atribuição de culpa por crimes à sociedade que ela, evidentemente, não pode cometer, mas sim indivíduos; a adoção de uma postura desconstrucionista em relação à grande cultura; a negação da possibilidade de se descobrir e saber a verdade; o dogma do politicamente correto. Investe contra tudo, como aconteceu há alguns anos, até contra o clássico da literatura infantil Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, acusando-o de racista sem considerar o momento histórico em que foi escrito.

Seria de admirar se a população, depois de tanto tempo de intensa lavagem cerebral, também não assumisse o relativismo como código de conduta em que para tudo há desculpa e justificativa. Qualquer coisa é arte. Qualquer comportamento, por mais censurável que seja, é desculpado. Privilégios passam a ser direitos. São assassinadas setenta mil pessoas por ano no Brasil e fica por isto mesmo e assim por diante. Como há muito tempo Hannah Arendt ensinou, o mal se banaliza quando não se pensa mais e se segue a corrente.