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Colunista 05/06/2017 14:32
Por: Wagner Azevedo

A chuva que não cessa há de cessar e esperançar

Nas últimas semanas a chuva se tornou o grande vilão da vida dos gaúchos. A chuva por si só não representa dor alguma, pelo contrário, bem medida, nos traz vida. Só com a água que regamos, que fertilizamos e fazemos florescer. Viver abaixo de chuva incessante gera o efeito contrário. Ademais dos efeitos da natureza, são milhares de famílias sem suas casas por alagamentos e por descaso político, dos homens que controlam o meio ambiente de tantas formas, mas ainda são ineficientes na proteção dos direitos básicos.

Talvez o maior problema da água seja justamente o seu descuido. É um elemento inacabável, porém que pode se tornar inutilizável. E se inutilizarmos a água, sabemos todos que a vida não prospera, nem mesmo como alimento, nem saciando a sede. No encontro de Jesus com a samaritana (Jo 4) descobre-se que a verdadeira água, aquela que sacia toda sede, encontra-se eternamente. Porém, é a água que, assim como varre as casas e as famílias do Rio Grande do Sul, varre uma humanidade toda (Gn 6). Qual a diferença da samaritana que descobre em si a fonte eterna, a água viva, e a de Noé, que navega sobre o finito da vida? Como a água que faz a morte, também dá esperança?

Pois bem, a chuva que nos arrasa no Rio Grande do Sul, e parece não acabar nunca, talvez não tenha começado em duas semanas. A desesperança cresce há muito tempo. Como dizer a uma família que tudo passará e ficará bem quando sair o sol, se as soluções a curto, médio e longo prazo no país nos desestabilizam cada dia mais? A iminência das reformas da previdência e trabalhista, uma possível eleição indireta, o controle da classe política e empresarial na vida de trabalhadores e trabalhadoras são sinais das utopias esfaceladas do tempo que vivemos. A tristeza e monotonia que trazem essas chuvas são reflexos do espírito de um povo sem certeza do seu caminho. A incerteza das famílias que, com chuva ou sem chuva, vivem esquecidas e destratadas pelo Estado que serve a outros interesses; a incerteza do resto da população que assiste o e ao desespero causado por governos que estacam apenas o que os mantém vivos.

Em Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez relata o estrago que quatro anos incessantes de chuvas fizeram em Macondo. As plantas foram arrancadas pela raiz, paredes desmoronavam, os peixes nadavam com a umidade do ar e as pessoas já estavam com suas peles verdes das algas. Nem todo mundo sobreviveu, mas os que sobreviveram precisaram vencer a ociosidade dos quatro anos fechados e conviver com a sempre bagunçada Macondo em um novo estado. Pessoas e animais morreram durante e depois da chuva, impossibilitados de resistir e/ou propositalmente – afinal morrer naquela tempestade seria horrível ou viver depois disso tudo com a esperança de quê? –. A verdade é que depois do dilúvio nada era igual.

Os efeitos da tempestade na cidade e nas pessoas foram marcos da história dos Buendía. A estiagem depois disso durou 10 anos. Mas o estado das coisas não era o mesmo. A chuva que caiu para Noé arrasou com aquilo que estava posto. As águas caem sem dar perspectiva de presente e de futuro. Precisamos saber pelo menos como Noé a navegar nessa destruição, como Aureliano Segundo a fugir da ociosidade, caminhar, enfrentar a água, reconhecer a transformação e cavar na busca dos tesouros enquanto se faz a desagua. Porém a água-viva é a fonte que não seca. A água que interessará depois disso tudo tem de ser a mesma do poço da Samaritana. Se não for para cessar, que seja para gerar vida.

As utopias que as águas incontroláveis nos tiram precisam brotar em algum espaço independente do sol escondido. A chuva que desola nosso Estado marca a vida de milhares de família, marca a história desse povo. É abusivo cobrar esperança diante disso tudo. Porém, João Bosco, num tempo que a chuva silenciava e escondia seus rastros – diferentes do que houve em Macondo – eternizado pela voz da Elis, nos encorajava: “Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”.