Por:
Marejando nostalgia
No outono a fumaça dos fogões à lenha dividindo espaço no céu com o nevoeiro matutino me remetem a um tempo nem tão distante em que, acredito, a vida era mais intensa. Basta passar um piá cheirando a bergamota na rua para que eu viaje na minha própria história e me veja sendo corrido pelos proprietários da “chácara” próxima ao arroio Laranjeiras; eles realmente tinham um trabalhão para expulsar a gente de lá. Jogar bola no campinho aos sábados à tarde era programa obrigatório, como ir no bar do Atalício para comer salame e tomar guaraná Polar na garrafa também era. Nos verões de outrora, não existia aquele atual córrego de excrementos; era um límpido manancial de águas cristalinas onde viviam preocupados lambaris com o excesso de garotos querendo tirá-los da água. Não era mesmo fácil a vida dos peixes, ainda mais com aquelas cortinas de cordas utilizadas para grandes acrobacias, tchimbuns (aquela onomatopéia de gente caindo na água), barrigaços e gritarias. As ruas do rincão não eram calçadas, as carroças não tinham pneus e de longe se ouvia aquele estralar de chapa nos pedregulhos e o alvoroço da cachorrada. Entre o pré e a oitava série, não me lembro quantas vezes fui de carona à escola; fazia chuva ou calor escaldante o compromisso era com os estudos, e nada mais. O progresso sempre houve, mas não em passos tão acelerados como agora. Sempre tinha tempo para dar um olá para todo mundo e todo mundo parecia sorrir. Ainda ecoa em meus ouvidos o apito da Sobrasil chamando gente dos quatro cantos da cidade para trabalhar, lanchar e ir embora, e quando percebo um inço crescendo na Marechal Deodoro recordo da soja que caía dos caminhões germinando à beira da rua. E o “seu” Albino e a “dona” Alceri tomando chimarrão em frente ao bar que tinham na casa da subida? Pois o “seu” Albino se foi e “dona” Alceri não mais tenho visto. O Atalício foi primeiro, mas antes a dona Geni.
Assim como as pessoas que nos são ternas se vão, se vão também os conceitos. Hoje tudo anda muito rápido. Não se sabe quando dá ou não para brincar com alguém. Quando se espera sorriso, se é surpreendido com um “pataço”. Não existem mais campinhos de futebol, não existe mais intensidade da vida; uma tela de plasma e um computador é tudo que as crianças precisam para crescer “bem-informadas”. Os noticiários recheados de tragédias com que convive a geração de hoje está tornando nossos filhos seres extremamente frios, que não se abalam com nada. Tudo é esquecido depois do comercial. Os valores andam mesmo muito mudados. Se uma criança não veste certa marca, automaticamente é excluída do grupo. Ah, e se não tem celular, é porque o pai é “pobre”. Aliás, o celular é um instrumento que tem uma certa correlação quando se trata de valor. Os aparelhos pré-pagos, por exemplo, são iguais aos de linha, porém, ao analisá-los superficialmente fica a dúvida se têm crédito ou não. Assim também são as pessoas: muitas são belas e formosas por fora, mas por dentro estão sem vida, sem graça, sem rumo. Outras pessoas podem não ser tão lindas, ter boa apresentação, mas são extremamente valiosas por dentro. Ser e não ter? Eis a questão.
Não sei por que, mas me sinto culpado de ter deixado este mundo chegar no estado em que se encontra. Talvez por dar tanto valor ao que os outros pensam quando deveria dar valor ao que eu penso. Marejando nostalgia e iniciando textos que nem sei como vão terminar me deixam bem melhor e me fazem acreditar que sempre é tempo de mudanças. Talvez eu tenha um lado belo que ainda não soube explorar. Talvez eu seja um celular de linha que esteve temporariamente fora de área. Que bom que sempre temos tempo para recomeçar!