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25/08/2009 16:56
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21 anos de sobriedade

Segunda-feira, noite de 1º de setembro. Um restaurante da cidade dá lugar a um ritual que se repete há 21 anos. Egon Felipe Heuser, um advogado de 68 anos, reúne a família para comemorar uma data especial. Na bem-montada mesa, copos brilhantes se misturam aos demais aparelhos, mas neles não há lugar para bebidas alcoólicas. A abstinência é festejada como um aniversário.
Terça-feira, manhã de 2 de setembro de 2008. O brilho nos olhos de Egon Heuser já não é de felicidade. Lágrimas estão prestes a descer pelo rosto e preencher as rugas, que só não são mais indeléveis do que a tristeza causada pelo álcool durante grande parte de sua vida. Por outro lado, a possibilidade de compartilhar a experiência, evitando que outras pessoas sigam o mesmo caminho, lhe dá forças para prosseguir, e foi com esta intenção que ele resolveu relatar o drama pessoal vivido durante o período em que o álcool foi seu companheiro mais freqüente.

Até o dia 1º de setembro de 1987, Egon era mais um entre milhões de pessoas privadas da liberdade de se abster do consumo de bebidas alcoólicas e sem conseguir controlar o seu consumo. Ele começou a beber regularmente ainda jovem, antes dos 14 anos, em casa, festas e bailes. Em Porto Alegre, onde o jovem santa-cruzense foi morar aos 14, passou a freqüentar bares, e hoje não sabe por qual razão se via tentado a beber sempre antes das refeições, aumentando as doses dia a dia. Não demorou para que as pseudo-vantagens apresentadas pela mídia começassem a fazer uma nova vítima. Sob o ponto de vista de que o álcool poderia trazer status e maior aceitação social, o jovem estava a um passo de ingressar no grupo de consumo de risco. E, como em tantos casos, isso não tardou a acontecer. O organismo foi se habituando ao efeito do álcool, ao mesmo tempo em que apareciam os primeiros pretextos para beber em sociedade, ou, conforme o jargão popular, “beber socialmente”. Aos 22 anos, quando se casou pela primeira vez, a dependência já era um fato. O casal de filhos não teve um pai presente nas atividades da escola, sendo preteridos pelo copo. Mas se substituía a família pelos copos, o álcool só não obteve sucesso em impedir a realização de um sonho: o de se formar em advocacia aos 35 anos. Aos 40, como conseqüência quase previsível, veio a separação. Os filhos cresceram e foram embora. Aos 47, o basta, a sustentação na sobriedade e o início de uma nova etapa. Casado há 16 anos com Nívea Hoffstätter, mãe de três filhos (um já falecido), Egon encontra na esposa e nos filhos que tem como dele o sustentáculo para continuar sóbrio. Lembre-se que abstinência é conquista de cada dia. Neste sentido, lembra que o tratamento precisa ser radical. “Parar de beber é de uma vez por todas. O doente deve aprender a viver sem álcool, uma vez que a dependência o impede de voltar a beber, mesmo que moderadamente”, explica.
REVOLTA - Os amigos Valter Auler, Sizico e Carlos Lüdtke hoje são lembrados com carinho por oportunizarem o primeiro contato de Egon com o Grupo Candelária de Alcoólicos Anônimos. Porém, engana-se quem pensa que ele aceitou com facilidade a idéia de ser levado à Clínica Central, em Lajeado, para tratamento. “Enquanto a pessoa não aceita que é alcoólatra, não existe tratamento que a faça parar”, pondera o advogado. “Cheguei ao ponto em que aceitei o fato de ter o problema e quis parar de vez, pois aprendi que todos somos impotentes perante o álcool”, sentencia. “Quando fiz o tratamento, fiz também uma retrospectiva da minha vida como alcoólatra e vi com clareza que não vi meus filhos crescerem. Nunca busquei um boletim na escola, pois preferia estar em outros lugares a estar em sua companhia”, conta. “Deixei de ir à igreja, vi meus filhos irem embora e fiquei sozinho por muitos anos”, lembra.
EXPERIÊNCIA - É através da ajuda e do suporte de pessoas de fora da família, com muita paciência, compreensão e perseverança recíproca, que o doente alcoólico e a sua família tomam consciência dos seus problemas e das suas necessidades. Só assim admitirão os seus próprios limites, de forma a poder encontrar o seu caminho e ultrapassar esta crise dolorosa, aspirando uma existência mais feliz na sociedade. Egon, por sorte, teve este apoio, porém relata casos em que alcoólatras passam um, dois, três dias fora de casa, chegando ao ponto da família se acostumar com a situação e não sentir mais sua falta. “Se sumir o cachorro das crianças, saem mãe, avó, empregada, todo mundo a perguntar pela vizinhança se viram o animal. Mas se é com o pai, não estão nem aí, porque, se está em casa, muitas vezes é só para brigar, quebrar tudo, xingar as crianças e bater na mulher”, compara.
RECAÍDA - Egon lembra que o alcoolismo é uma doença crônica. Por esse motivo, a recaída pode vir a qualquer momento. “A recaída não deve ser considerada um insucesso ou uma fraqueza da pessoa, mas um sinal de que as dificuldades ainda não estão totalmente ultrapassadas e de que o indivíduo não poderá recorrer ao álcool para resolvê-las”, lembra. “É neste momento que o doente alcoólico tem necessidade de suporte para encontrar a sobriedade, porque nada o impede de chegar num bar e beber”. Neste âmbito, são essenciais os programas de acompanhamento e, antes de tudo, a força de vontade da pessoa para deixar o vício, explica.
O GRUPO - Com a sobriedade, Egon recuperou também seu crédito no comércio, a possibilidade de ter uma conta bancária e a aceitação pela sociedade. Ele destaca, no entanto, a grande dificuldade de manter a abstinência. Para essa finalidade, a participação regular em reuniões de grupos é uma forma constante de tratamento. Tais associações estão sempre disponíveis às pessoas com problemas relacionados ao álcool, que procuram quem os ouça e lhes ofereça ajuda.
O MITO - Para se sair da dependência do álcool, é preciso aprender a conhecer esta doença e desfazer mitos, falsos conceitos e idéias preconcebidas. Muitos consumidores sentem imediatamente efeitos agradáveis logo que ingerem bebidas alcoólicas, associando-as a prazer, desinibição e sociabilidade. No entanto, a maior parte dessas pessoas consegue manter-se longe dos excessos durante toda a vida. Para se beber sem perigo, é indispensável a moderação. Consumir álcool desse modo é beber sem criar problemas nem para si nem para os outros. Todavia, o álcool é uma droga de efeitos diferentes em cada indivíduo. Em certas situações e em algumas pessoas, uma pequena quantidade já basta para criar desequilíbrio, podendo fazer surgir uma compulsão, o que pode gerar a dependência. Por esta razão, beber socialmente não passa de um mito.
OS TIPOS DE BEBEDORES - Para Egon Heuser, os bebedores podem ser classificados em três grupos: os iniciais, os habituais e os bebedores-problema. O bebedor inicial é aquele que bebe hoje e volta a beber daqui a uma, duas semanas. Já o bebedor habitual é aquele que entra em um bar e o atendente nem precisa perguntar qual tipo de bebida irá querer, pois já está habituado à sua presença. Na curva ascendente, o bebedor-problema faz jus ao nome, e para ele só há duas saídas, ambas extremas: o tratamento ou o cemitério. “Este tipo de bebedor nunca mais irá poder beber coisa alguma”, explica Egon. “O alcoolismo é uma doença sem cura, que se pode apenas estancar. E esta é a realidade de todo alcoólatra”, continua.
ESTEIOS ENFRAQUECIDOS - As tensões e a insegurança ocasionadas pelo comportamento dos alcoólatras influenciam todos e deterioram o ambiente familiar. Há poucos anos, segundo a Organização Mundial da Saúde, 10% da população dos municípios tinham problemas com o alcoolismo. Hoje, esse percentual já é maior e cresce devido ao fato de as mulheres beberem cada vez mais, o que pode ser comprovado pela quantidade de pessoas do sexo feminino freqüentando bares e ingerindo bebidas alcoólicas, tanto na cidade como no interior. “O maior problema do alcoolismo feminino é o fato de a mulher sempre ser considerada o esteio da família, e, com o advento do alcoolismo, a família tende a se desintegrar com maior rapidez”, considerou o advogado.
AJUDA - Quando os membros da família se sentem preparados para aceitar ajuda exterior, compreenderão que não são os únicos a ter este tipo de problema. Muitas outras pessoas se confrontam com as mesmas dificuldades, como o grupo Candelária de Alcoólicos Anônimos. Os participantes são pessoas que vivem ou viveram a mesma situação, ou seja, alcoolismo na família. Tais grupos se dirigem não só aos familiares de alcoólicos, mas também a pessoas que crescem numa família alcoólica, sofrendo suas conseqüências. Estas associações oferecem um clima de confiança, calor humano e apoio para ultrapassar os problemas do álcool no meio familiar, facilitando também as trocas de experiência. Em Candelária, o grupo se reúne todas as terças-feiras, das 20 às 22h, no salão paroquial da Comunidade Católica. Não há taxa de adesão nem cobrança de mensalidades.

Alerta vermelho
Alguns sinais que podem alertar quanto aos problemas relacionados à bebida:
* A pessoa bebe para relaxar e esquecer os problemas que a atormentam;
* A pessoa se refugia na bebida diante de brigas com amigos, pais e outras pessoas;
* A pessoa bebe sozinha, sem companhia;
* A pessoa começa a beber logo de manhã, antes de ir para a escola ou para o trabalho;
* A pessoa mente quando alguém lhe pergunta quanto bebe por dia;
* A pessoa acha que beber muito é sinal de poder, e se acha “o bom” por beber mais que qualquer um;
* A pessoa fica bêbada cada vez que coloca uma gota de álcool na boca, mesmo sem querer tomar demais e ficar alcoolizada.