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Geral 06/05/2019 17:22
Por: Luciano Mallmann

Linha do Rio: bastidores e considerações finais

  • August Friedrich Beise
  • Justine Friderike (Lenz) Fick
  • Caroline Trapp

Respiro e persigo uma luz de outra vidas.

E ainda que as janelas se fechem (...), é certo que amanhece.

(Hilda Hilst: A obscena senhora D.)

O desafio estava anunciado mesmo antes do início das atividades relacionadas à pesquisa: pela riqueza de sua história e pelo elevado número de imigrantes que encontraram na localidade sua terra prometida, a Linha do Rio, no que se refere à abordagem histórica, teria o passado mais difícil de ser contado, em comparação às outras da série “Conhecendo Nossas Localidades”. E assim foi. Só que por motivos muito mais inesperados do que se havia previsto de início. Mesmo que todo projeto em que se almeja a perfeição esteja predestinado ao fracasso, sabe-se que é característico do trabalho de pesquisa encontrar formas, às vezes impensadas, de reconstituir ao menos uma parcela do que se encontra perdido, em muitos casos de maneira irreversível. Como pertencentes à esfera da inacessibilidade, podemos citar os nomes do professor José Türk e do médico Arnaldo Schilling, cujas histórias, por diferentes razões, não puderam ser contadas. Ao mesmo tempo, a inexistência de registros nos levou a limitar os fatos relativos ao antigo hospital da localidade a uma sucessão incontornável de suposições, impondo-se uma total inexistência de certezas: nunca antes o advérbio “possivelmente” teve um uso tão irrestrito como neste capítulo específico da série. O que se conseguiu narrar sobre o passado da Linha do Rio se deve à imensa capacidade de rememoração de cinco pessoas em especial, às quais registramos um especial agradecimento: Romeu Karnopp, Vali Fassbinder, Jacob Schuck, Reinardo Hintz e Vitória Bringmann.

Logo de início, houve um receio de apresentar esta série de reportagens aos leitores em razão do fato de grande parte dos acontecimentos narrados ter seu ponto de partida em um cemitério. Sabe-se que é comum as almas mais sensíveis guardarem certo temor em relação a esse lado mais sombrio e definitivo da vida: são poucos os que aceitam com resignação a finitude como característica que nos iguala, sem distinção. Porém foi lá, entre os estreitos limites do Cemitério Professor José Türk, que estas reportagens tiveram início, e foi nesse mesmo lugar que surgiram as questões que levaram à série de considerações finais deste encerramento desta etapa da série. Depois de escritos todos os textos publicados nas últimas edições da Folha, algo dizia na mente, com nitidez, que o trabalho não havia sido concluído, e que havia aspectos ainda por completo ignorados. Acontece, nesses momentos, de o raciocínio perder o pouco que possui de eloquência, enquanto que as possíveis explicações pertencem ao mundo de uma forma de pensamento muitas vezes indistinta, vaga e por vezes duvidosa que costumamos chamar de intuição. E assim, tendo na mente essas interrogações, com o auxílio de uma câmera fotográfica, buscou-se fazer uma última visita à referida necrópole.

Os imigrantes e suas fisionomias

O franco declínio e o estado verdadeiramente lamentável daqueles monumentos - de importância histórica por conterem informações primordiais da história do município -, com suas mensagens póstumas grafadas em alemão em pedras que se mostram fragilizadas com o passar das décadas, não impediu de ver, em questão de segundos, as fontes de informação que, subliminarmente, clamaram para receber atenção: as fisionomias dos imigrantes nas fotografias das lápides. A intenção dessas imagens, de preservar para além da vida a aparência física de quem posou para as lentes fotográficas encontrou, naquele cemitério com partes em ruínas, o êxito em sua plenitude, cujo momento tem vez mais de um século depois da realização desses registros. Quando foi inventada, em 1839 (alguns historiadores defendem o ano de 1837), a fotografia trouxe aos primeiros modelos, ao verem sua imagem reproduzida com tanta nitidez, tal assombro que levou muitos a conceber a famosa e discutida desconfiança de que a nova máquina aprisionava, no exíguo espaço retangular de papel, a alma das pessoas fotografadas. Assim, a crença de que com a morte não se devia brincar se tornou ainda mais forte. Não se tratava mais de um mero retrato feito com tinta a óleo ou grafite, e disso vieram as sensações de susto e de estranhamento, causadas em função de a fotografia ser uma reprodução exata dos modelos. Se as feições graves da maioria dos primeiros adeptos a se exporem à moderna invenção eram habituais no protocolo de tempos em que a formalidade era a regra, por outro lado é possível perceber uma infinidade de interrogações nos olhares captados pelas lentes. Entre essas questões, impunha-se a seguinte: qual seria o preço a pagar para poder ter um pedaço da alma imortalizado sobre um pedaço de papel? A pergunta surgiu num tempo em que ainda havia fortes resquícios de superstição na mente das pessoas, pois a razão ainda não havia se entranhado nos cérebros, como aconteceria na segunda metade daquele século.

No Cemitério Professor José Türk, existem particularmente cinco retratos cuja singularidade trouxe, num primeiro momento, espanto e, consequentemente, interrogações. São os rostos de cinco imigrantes, pessoas que decidiram fazer uma travessia transoceânica para ter direito a uma vida mais digna. A respeito da visualização de tais fotografias, não se pode dizer, em momento algum, que nossos olhares se encontraram com os desses imigrantes. Faz parte da ilusão da arte fotográfica (considerada uma forma de magia, segundo o teórico Roland Barthes) a sensação de que olhares se cruzam, mas sabe-se que é mera impressão. Assim sendo, deter-se hoje no olhar de desafio lançado ao mundo, à vida e à morte por August Beise; na impressão de incômodo pela privacidade invadida sugerida pelo rosto de Justine Friderike Fick; na expressão grave e ao mesmo tempo simpática de Carolina Trapp; ou mesmo às fisionomias não tão sérias de Therese Rohde e de Karl Friedrich Fick, aparentando certa bonomia, é perder-se de todo no que já foi e que não mais existe. Delicadamente impressos sobre uma peça oval em porcelana, esses retratos lograram perseverar e sobreviver ao tempo com maior resistência do que a própria pedra tumular, que, lentamente, se esfarela e se converte em areia, enquanto os dizeres se anuviam. E a impressionante nitidez de tais imagens contrasta fortemente com o desconhecimento de praticamente tudo a respeito das pessoas em questão, ressalva feita às datas de nascimento e morte – que também, em breve, desaparecerão. A julgar pelo que se vê, restarão somente as fotografias.

Mas a memória é sempre sujeita a impressões, retendo o que se ouviu contar acerca desses ausentes, propiciando a essas pessoas algo semelhante a uma história, talvez uma sobrevida, mas que sabemos serem ilusórias. Friedrich Nietzsche: “Não existem fatos, apenas interpretações”. E é do mais profundo de sua ausência que essas pessoas, silenciosamente, nos lançam aquilo que, pela força das circunstâncias, acabou por se converter em seus olhares definitivos. Interpretar tais fisionomias e olhares profundamente lúcidos, no momento em que seus retratos foram feitos, como estando ainda à espera do apaziguamento, talvez seja o mais próximo que se pode chegar da leitura correta, sem se deter em mera interpretação. Talvez a questão acertada seria saber se existe olhar que possa estar apaziguado antes de sua hora derradeira ou mesmo nesse último momento. Outra possível verdade: não existe silêncio mais profundo, instigante, que aquele que acompanha os olhares dos que se encontram ausentes de corpo e alma.

A fotografia como uma arma contra o esquecimento

Antes da invenção da fotografia, entre tantos aspectos dolorosos que envolvem a perda de um ente querido, acontecia algo que hoje, com a proliferação das fotografias instantâneas possibilitadas pelos celulares, é um tanto difícil de imaginar: depois de sua morte, pouco a pouco vinha o gradual esquecimento, entre os que ficavam, das feições das pessoas amadas e perdidas. Isso ocorria de maneira inevitável e de todo independente da força dos laços entre os que se iam e os que permaneciam. Vendo por esse lado, a fotografia de um familiar que já não se encontra mais entre os vivos constituía um comovedor modo de recordar: tinha-se ali o rosto amado tal como ele era, por fim liberto da passagem dos anos. E o passar do tempo, em luta constante contra a preservação da memória, também mantém vivos alguns dados para além da existência de netos ou bisnetos – mesmo que seja por acaso. É a partir desse momento que, em vez de memórias familiares, esses personagens passam a ser história da formação de um povo. O que, por sua vez, também se consolida como obra do tempo.

(Quanto mais se interpreta, mais sujeito se está ao equívoco. É o que se descobre na hora de deixar o Cemitério Professor José Türk, onde, antes de voltar à cidade, lançamos um último olhar às fotografias dos mortos. A tempo, percebe-se que não somos nós que os olhamos. Por um direito adquirido com a precedência, são eles que, de profundezas insondáveis, nos contemplam com suas fisionomias severas, que a ausência e o tempo passado revestiram de profundidade).