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Geral 16/11/2018 14:37
Por: Luciano Mallmann

Conhecendo Nossas Localidades: crônica e fotos inéditas

  • Antiga casa comercial de Arthur Schoenfeldt
  • Margarida Lersch Boeck
  • Gustav Adolf Friedrich Natorp, o pastor-poeta

Palavras finais: o poeta e a margarida, o esquecimento e o silêncio

Texto e fotos: Luciano Mallmann

lucmallmann@hotmail.com

Por vezes pode ser uma atitude inconsciente, mas, na maior parte dos casos, é intencional o desejo manifestado pelos cidadãos, em certos momentos da vida, de fazer algo que ficará como legado, algo que chegue à posteridade incólume e fértil em sua capacidade de dar a conhecer quem um dia existiu, trabalhou, amou, lutou, sonhou e, por fim, partiu. Esses atos que se fazem com o objetivo de que seu nome chegue a tempos distantes não é como ter um filho, que vai constituir outra individualidade, pois ele próprio também possuirá, por sua vez, seu particular desejo de alguma transcendência. Na verdade, trata-se de um gesto mais singelo, como o nome escrito na página de abertura de algum livro ou um simples registro fotográfico, testemunhando que uma determinada família teve história, comprovando que nesse enredo não faltaram as lutas próprias de cada dia, as vitórias e as ocasionais derrotas, alegrias e tristezas. No âmago desse desejo de que algo se perpetue, jazem, irremediáveis, o desejo de que alguma característica de uma personalidade permaneça eternizada, diante da fatal consciência de que nada pode ser feito contra a angústia tão humana latente na consciência da brevidade da vida. Pela consciência de a existência ser única e pelo fato de se ter feito a diferença enquanto viveu, é natural o premente desejo de deter, de algum modo, o curso do passar dos anos, e que, pelo fato de a natureza imutável do tempo consiste em ser ele um fluxo ininterrupto, é próprio do passar dos anos o fato de que, em algum momento desse fluxo, as coisas, as existências e os seres chegarem ao fim. Estranho seria se assim não fosse.

Dentro da galeria dos lugares pesquisados, o Travessão Schoenfeldt ficará sempre sendo a localidade que, possuindo um passado e tendo tido a oportunidade de falar a respeito, por alguma razão os moradores optaram por manter-se em silêncio. Em algumas vezes, isso aconteceu pelas urgências próprias ao que sabidamente é mais importante, como o trabalho de cada dia, ao qual ninguém quer se furtar. Em outros casos, pelo pensamento de que a preservação dos fatos carece de importância, de valor, por acreditar que a história seja apenas o passado, e, por outro lado, da mesma forma como a própria tentativa feita hoje de registrar algo sobre os antigos tempos também, quem sabe um dia, constituirá uma lembrança esquecida. Porém - e esse foi o maior número de casos -, os moradores da localidade preferiram se calar por razões que escaparam ao nosso entendimento. Muito mais do que um sentimento de não possuir história ou por acreditar que determinados fatos não mais carecem de importância, houve um contraste incompreensível, infelizmente irremediável, entre os caracteres das lápides mortuárias e tudo o que se ignora a respeito dos que ali jazem, em tantos casos há mais de um século. Mas o maior contraste - e aqui o infelizmente adquire um tom de gravidade - se percebeu entre as marcas de rostos plenos de passado e as vozes que decidiram se calar. E o legado dos antepassados, tornado silêncio, se perdeu. Possivelmente para sempre. Pois, no suceder das gerações, se alguma delas se cala, o já mencionado fluxo é interrompido.

Compreende-se que olhar para o passado nem sempre é fácil, e a resistência em muitos casos é acompanhada de certo mal-estar. Abrir um baú de fotografias antigas e deparar-se com a cor amarela que o tempo trouxe ao papel fotográfico produz também, por sua vez, um contraste com o aspecto mudo próprio de tais imagens e que pode levar a pensar que amanhã seremos nós que estaremos enquadrados em retângulos de papel envelhecido, vistos talvez com a mesma indiferença com que lançamos um olhar distraído para nossos antepassados – quando olhamos. Olhar o passado através das fotografias de nossos avós remete-nos ao que existe de mais característico ligado a tudo o que é humano: a consciência da finitude de nossas trajetórias.

 

O poeta e a margarida

A opção pelo silêncio levou a reportagem a tomar o rumo de outras direções, buscando resgatar do passado duas pessoas que, em tempos remotos, foram marcantes na região e que possuem algumas características em comum: Margarida Lersch Boeck (nascida Rischmüller) e o Pastor Gustav Natorp. Ambos descritos como pessoas cultas e sensíveis, tanto um como outro tiveram papéis de destacada relevância na localidade, a ponto de fazer pensar que a história do Travessão Schoenfeldt seria impensável não fosse a causa do ensino abraçada com ardor por Margarida, bem como as visitas constantes do pastor-poeta Natorp, como foi uma vez descrito, aos habitantes do lugar.

A cultura e a sensibilidade não foram os únicos aspectos a unir Natorp e Margarida. Sendo ambos imigrantes, é natural a curiosidade sobre os motivos que os levaram a deixar a Alemanha, mesmo que, para a época, essa alternativa fosse algo natural. Todavia, em nenhum dos casos se conseguiu descobrir as razões da imigração. De qualquer modo, uma vez estabelecido na igreja, Natorp causou uma situação de descontentamento entre os membros da comunidade pelo fato de não ser pastor formado, dividindo-os entre contrários e favoráveis à sua permanência na comunidade. Tal impasse atingiu o ápice em 1898, quando Natorp colocou o cargo à disposição. Mesmo que os ânimos tenham serenado, o sentimento negativo perdurou por uma parte expressiva dos mais de 30 anos de seu pastorado. Vivendo uma trajetória marcada por duas perdas precoces (da primeira esposa, em 1896, e de filha Alwine, em 1917), o pastor usava a escrita para exprimir seu pensamento e, mais ao final da vida, o sentimento de luto pela morte da filha. Sua própria morte, aos 59 anos, também pode ser considerada precoce.

Personalidade mais controversa foi Margarida Lersch Boeck. Informações contraditórias, acompanhadas de descrições contrastantes, como mulher “possuidora de uma bondade infinita”, ao mesmo tempo em que era considerada uma pessoa estranha, o que é certo é que Margarida foi uma educadora de inquestionável talento. Todavia, alguns relatos levam a pensar que havia desconfiança, de ambas as partes, entre a professora e a comunidade. Era próprio da época, por exemplo, que uma professora não recebesse seu pagamento em dinheiro, e sim em gêneros – e é nesse aspecto que se manifesta a ideia de que algo não corria bem. O que teria acontecido, por exemplo, para Margarida desconfiar de que alguém pudesse envenenar o leite que lhe ofereciam? (A respeito, não se tem notícia de que isso tenha acontecido alguma vez. No mesmo sentido, tudo o que foi feito, segundo consta, foi pensando em seu bem-estar) Essa questão, bem o hábito de usar obstinadamente o luto, bem como a transferência a um asilo, contra a sua vontade, deixam questões em aberto. De qualquer maneira, o que possivelmente tornava Margarida semelhante a Gustav Natorp era o fato de ambos, sendo dotados de rara lucidez perante a vida, serem plenamente capazes de pensar por si mesmos, não dependendo dos outros para terem suas próprias concepções sobre tudo. A lucidez é uma forma de olhar que a pessoa possui ou não, sendo também faculdade que pode ser definida como uma clara consciência da realidade e das pessoas em torno de si. Enxergar claramente, não raro, acarreta sofrimento, e, no caso, em ambos os casos houve um custo elevado: para Natorp, a desconfiança por parte dos fiéis, até último ano de vida. Para Margarida, o estranhamento e, por fim, o asilo.

 

Silêncio e esquecimento

É costume dar a diferentes instituições nomes de pessoas que, pela relevância de seu trabalho, pretende-se homenagear e preservar a memória. Todavia, como tudo, enfim, entre os seres humanos, sobrevém o véu do tempo. Seja uma escola, seja um hospital, há sempre um momento em que o que foi nome de pessoa, a cada vez que é pronunciado, pela força do hábito, vai se desgastando com o uso. São muito poucos os que percebem, um belo dia, que o nome não significa mais coisa alguma. Seus nomes são usados em prédios que, tal como as lápides, contrastam com tudo o que não sabemos a seu respeito. E chega o momento em que então se desconhece por completo o fato de o nome de determinado lugar significar a existência de uma pessoa, que teve história, que teve vontade, ou uma canção preferida. Não obstante essa realidade de desconhecimento, o nome continua sendo uma expressão caída em desuso. Algo que sobrevive apenas como palavras vazias que, na falta de outro sentido, carregam o significado único de um imenso bloco de esquecimento e silêncio.