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26/03/2010 11:44
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Outono: no a extino, mas uma esperana

Mesmo os mais distrados no deixam de perceber, a partir dos meses de maro e abril, um fenmeno que a cada ano se repete. Depois de roubarem a cena nos ltimos meses, os vermelhos, os amarelos vibrantes e a exuberncia dos mais diversos tons de verde saem de cena para dar lugar a tonalidades mais sbrias, no raro sombrias, mas igualmente singulares em sua beleza. Mais precisamente no ltimo dia 20, teve incio o outono, dando continuidade a um ciclo que se repete h muitos milhares de anos, cuja origem se confunde com a histria da humanidade. uma poca em que o mundo, como na primavera, parece ter vida prpria, embora seu movimento agora seja de contrao e introspeco. Segundo as doutrinas pantestas, Deus seria a soma de tudo quanto existe, e essas emanaes no seriam mais que a variao de seus humores. A natureza parece imitar o ato humano de recolher-se em si mesmo, para um longo estado de letargia. Esse movimento lembra a humildade de uma retrao voluntria como que para a gestao de um ressurgimento no muito distante. Trata-se da estao das rvores amareladas, das folhas secas se amontoando na calada, espera de que uma vassoura ou um vento mais forte as carregue. ainda a poca da migrao de algumas espcies de pssaros em busca de temperaturas mais aprazveis. Os antigos estoicos, que buscavam racionalizar a tica, acreditavam ver na sucesso das estaes uma ordem imanente ao cosmos. A partir desse conceito, buscavam reger seus atos de acordo com a natureza. Na tradio secular, a sequncia das estaes, assim como das fases lunares, marca as diferentes etapas da vida, no apenas do homem como indivduo, mas tambm das sociedades e civilizaes. Nesse sentido, o outono corresponde ao amadurecimento. No por acaso que a estao das colheitas, entre os intervalos das ltimas chuvas de vero. Conforme Jean Chevalier, as estaes simbolizam ainda "a alternncia cclica e os perptuos reincios". Contrariamente s regies mais ao norte do pas, o clima no Sul se caracteriza pelas diferenas bem demarcadas entre as estaes. Em poca de efeito estufa, essas diferenas entre os perodos quentes e frios so ainda mais acentuadas, chegando a contrastes polares no inverno e no vero. No campo da msica erudita, a no ser a universalidade do amor, nenhum outro tema inspirou tanto os compositores como as diferentes manifestaes da natureza. Os exemplos so expressivos tanto pela qualidade como pela quantidade de composies. Pode-se recorrer a Beethoven e sua Sinfonia Pastoral, que se define por uma descrio dos aspectos pictricos dos mais diversos fenmenos naturais, bem como das emoes por eles despertadas. Reconhecem-se nesta sinfonia o canto dos pssaros, a dana dos camponeses e a tempestade. Igualmente digno de nota Franz Schubert, com suas atmosferas ora clidas, ora glaciais. Todavia, a obra mais conhecida, sem dvida, de Antnio Vivaldi, que, em 1725, reuniu sob um mesmo ttulo quatro concertos para violino e orquestra, fazendo deles uma nica obra: As quatro estaes. Cada concerto traz o nome de uma estao do ano. Depois dos riachos murmurantes e dos pssaros da Primavera e do Vero, surge talvez o mais belo entre os quatro concertos: o Outono. A pgina da partitura traz a temtica muito bem sintetizada pela sua frase de abertura: "Os camponeses festejam a colheita com cantos e danas". A msica composta pelo italiano retrata e desenvolve com maestria o tema proposto. Depois de arar a terra e de confiar a ela as sementes, os campnios literalmente tm entre as mos os frutos do seu trabalho. Os ramos perderam o vio do antigo tom esverdeado, j exibindo os matizes de dourado no que antes foi pleno de vida. So prenncios da estao fria por excelncia, o Inverno. Ao contrrio do que talvez se espere, esse movimento no exprime necessariamente tristeza, mas antes a dignidade e a nobreza de uma nostlgica paz. No uma extino, mas apenas o fim de mais um ciclo, trazendo consigo a esperana de um possvel recomeo.