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Pscoa, ontem e hoje
So muitos os relatos de como eram vividas a Quaresma e a Pscoa na cidade e no interior h quarenta, cinquenta anos atrs. Comparar o ontem e o hoje, em muitos casos, no leva a lugar algum, mas, nesse caso em particular, os contrastes so eloquentes e, por vezes, pungentes, levando-nos a interrogar: como podem os costumes mudar tanto em um tempo que, considerando-se bem, nem tanto assim? Que fatores influenciaram nesses modos de vivenciar esse perodo to importante para a f crist? E, por fim, o que o modo como vemos datas como a Pscoa e a Sexta-Feira Santa dizem a nosso respeito? Triste saber que, sob o aspecto mais prtico, pensar nessas questes no trar alterao alguma aos costumes; no mximo, lanar talvez um ou outro raio de luz sobre os fatos e as nossas maneiras de ver e de viver, subjetivamente, essa poca. Na verdade, a maneira como vemos a religio, ou Deus, mais especificamente, acaba dizendo mais a respeito de ns mesmos do que sobre os assuntos em questo. No difcil concluir, a respeito disso, que nesse sentido somos melhores criadores que criaturas.
Conta-se, por exemplo, que havia toda uma preparao para as datas em que hoje se lembram a morte e a ressurreio de Jesus. Em cada domingo da Quaresma, era costume no faltar missa. Vivia-se numa atmosfera em que no era apenas Jesus o ressuscitado, mas toda a f na salvao trazida por aquele que, segundo as religies crists, representa a redeno de toda a humanidade. Percebe-se assim o quanto a f depende de que nela se faam investimentos, como um fundo de reserva para eventuais tempos de carestia. Investir na f, antigamente, exigia que no se fizessem sacrifcios apenas na Sexta-Feira Santa, mas em todo o perodo compreendido pela Quaresma. No se tratava de abrir mo to-somente da carne durante esses dias; vivia-se uma espcie de luto antecipado pela morte do Messias. Manter-se em silncio era algo que se exigia sobretudo s crianas. Na Quinta-Feira Santa, havia a tradicional missa de lava-ps, lembrando a humildade de Jesus ao lavar e secar os ps dos doze discpulos. No raro, a essa missa seguia-se uma procisso. A contemplao das quatorze estaes da via-sacra tambm exigia uma ateno especial. Eram momentos de reflexo e, mais do que tudo, de orao. Na Sexta-Feira da Paixo, o silncio e a circunspeco eram os imperativos maiores, quebrados apenas no amanhecer do domingo de Pscoa. Se grande parte de todo esse cerimonial no foi abolido, isso no significa que seja ainda respeitado pela maior parte da sociedade. Em tempos em que se pergunta que fim levaram os valores que formam o vasto conjunto da tica, recebe-se como resposta a indiferena de grande parte da populao.
Nos ltimos anos, foram muitas as obras, at mesmo na fico, que colocaram em dvida no apenas a ressurreio, mas a prpria validade dos ensinamentos de Cristo. No faltaram manifestaes do prprio Vaticano em relao a tais obras e ao papel exercido por elas sobre a f crist. No seria incorrer em erro dizer que, se as tradies no foram lesadas, o mesmo no pode ser dito a respeito da f. Na filosofia, o pensamento tomou outro rumo. Os modernos autores relembram, por exemplo, Michel de Montaigne, para quem "filosofar aprender a morrer". Essa definio, aos olhos da modernidade, significa abrir mo de uma srie de iluses - entre elas as religies - e viver de acordo com uma maior simplicidade, contentando-nos com a pequenez e as misrias prprias da existncia humana. "A eternidade agora: no um futuro que nos prometido, o presente mesmo que nos oferecido", diz Andr Comte-Sponville. Este ltimo ensina ainda que, enquanto algum tiver esperana de ser feliz, estar separado da felicidade por sua prpria esperana. O desespero seria o caminho mais acertado a tomar para quem busca a felicidade e a sabedoria, significando, aqui, nada esperar.
Mas imaginemos, por outro lado, um Jesus destitudo de toda aura religiosa, e procuremos examinar o seu ensinamento dentro do contexto universal, poucos sculos aps o surgimento da filosofia na Grcia. preciso lembrar, antes de tudo, que o nazareno no nasceu nas proximidades das acrpoles helnicas, mas em pleno Oriente Mdio. Tomemos, sobretudo, o fato de que o Ocidente no foi educado por Plato ou Aristteles, mas sim pela mensagem de amor resumida em mandamentos como estes: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei", ou "Ama ao teu prximo como a ti mesmo". O que haveria de to expressivo em mensagens aparentemente to simples, que fariam de Jesus o maior divisor de guas da histria? A resposta, diro alguns, estaria na fora poltica usada na transmisso de suas palavras, ou ainda que muitos prefeririam uma mentira feliz a uma triste verdade. Contudo, no o que importa. O fato que ensinamentos como os encontrados no sermo da montanha, nas parbolas, constituem, por sua carga de inovao e dentro daquele contexto, uma contribuio de uma fora nunca antes vista na histria da humanidade. Prosseguem, todavia, as dvidas sobre o fato de Jesus ter ressuscitado ou no depois de sua crucifixo. Mas, diante do legado de seus ensinamentos, isso teria realmente importncia? No bastam os ensinamentos? claro que os religiosos no abrem mo desse ponto, mas, em todo caso, ao lado da grandiosidade da herana contida na mensagem, trata-se de uma questo secundria. Em todo caso, simplifiquemos: quase dois mil anos depois, seria possvel imaginar como seria o mundo hoje sem a passagem de Jesus? Se tirarmos da histria seus representantes mais ilustres, pouco restar a contar. Basta lembrar que, sem o mandamento de amor ao prximo, no haveria hoje sequer a Declarao Universal dos Direitos do Homem. Em tempos de sociedade individualizada, difcil imaginar um mundo ainda mais dividido.
Uma boa Pscoa a todos.
Abril de 2010.