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01/04/2010 12:27
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O pescador de marreco

O mercado de peixes est absurdamente inflacionado por causa da Semana Santa. Me contaram - e se estou mentindo por boca de outros -, que em alguns lugares o fil de trara est sendo comercializado por pelo menos 50% a mais em relao ao preo do ano passado, na mais perfeita caracterizao da lei da oferta e da procura. Mas me nego e fao um gritedo em pagar uma fortuna por um quilo de peixe. Seria uma desonra para meus antepassados - dos quais herdei toda a habilidade e tcnica de pescador. Tambm penso no futuro das novas geraes, que teriam que se criar sob o estigma de ter havido no cl dos Alves um rapaz que foi ao mercado para comprar peixe. Pois bem, por causa disso fui pescar na sexta-feira passada. Aquela mxima que virou at msica "T nervoso, v pescar", deve ter sido inventada por algum abastado abestado que s ficava na sombra do mato esperando que os verdadeiros pescadores se virassem para tirar o peixe da gua. Logicamente ele iria encostar no peixe para levar boca, em forma de fil, assado, bolinho, etctera. Em tudo quanto lugar tem gente assim. Lgico que o ritual das pescaria algo cansativo, mas tambm compensador, por exemplo, a ltima oportunidade que voc tem de usar aquela camiseta velha que tem mais furo do que pano, o calo com um rasgo na parte prxima ao saco e que sua esposa insiste em no costurar e o tnis que voc j no usa faz anos mas que sempre est l, ocupando lugar no armrio. Tambm a oportunidade de voc observar como aquele estojo de primeiros-socorros - que h pouco era de uso obrigatrio nos automveis - extremamente til para colocar cigarros e fsforos. Na pescaria, qualquer pelanca serve para assar; certas marcas de cerveja at so toleradas e a cachaa faz uma parceria sem igual com o limo, o acar e o gelo. Seus parceiros no se importam se voc est falando alto demais, porque no tem televiso, e no tendo televiso, no tem novela. Enfim, esta a parte da desopilao, que est alternada com momentos de puro estresse e de ataques de nervos. Sim, por vezes, pescaria quase vira sinnimo de judiaria, e a pior de todas elas a que se faz em sangas. Sanga um lugar onde se junta tudo quanto tipo de bicho que se cria na gua. Mal-comparando, tipo uma prefeitura onde o prefeito, para ganhar a eleio, teve que se aliar com trocentos partidos e, depois, dividir as vagas dos CC e estes terem que conviver harmoniosamente no mesmo aude espao. Uns mostram que so bons de servios, e esto no grupo mais seleto, tipo a trara, o cascudo, o jundi, o pintado, o muum, a carpa e o lambari; no segundo grupo, esto o speck kopf, a joaninha, o jundi peidador - que um tipo de peixe que s serve para furar os dedos da gente com o ferro e que tem este nome porque, quando apertado, faz um barulho parecido com um, digamos... "pum", porque falar peido aqui fica feio. Num terceiro nvel esto aqueles que s vo pra esculhambar, tipo as tartarugas, que comem as iscas e fazem o maior estrago se caem numa rede ou engolem um anzol, ou seja, s fazem cagada e tem de ser monitoradas constantemente. por isso que as chamam de cgados, com o acento colocado devidamente no lugar certo, mas neste caso com a slaba tnica no lugar errado. Terminam aqui as comparaes. A chega a hora de voc lanar o anzol na gua e aguardar o resultado, mas nesse comenos, tem de suportar certas coisas inerentes ao local, e no s dentro dgua o movimento grande. Sempre tem alguma mutuca que vem para lhe "sentar" o ferro; existem tocos estrategicamente colocados para voc furar o p ou tropear, alm dos galhos baixos, geralmente da altura de sua testa; l pelas tantas, um anzol tranca no toco e quando voc puxa, quebra a taquara; l de cima, o sol te queima as costas, e vez por outra voc sente-se literalmente como uma vaca atolada no barro, e fedendo a vaca tambm... Mas so nas pescarias que surgem as mais incrveis histrias, como a que aconteceu nesta ltima. Sa da tal sanga e, no caminho para casa, resolvi atirar um varejo no aude da propriedade. Precisava mesmo parar ali para limpar as sovelas que peguei e no custava nada dar mais uma "tentada". Na verdade, era um tremendo dum varejo, com 50 metros de linha e uma chumbada de 200 gramas, mais ou menos. Desenrolei o varejo, isquei o anzol e comecei o ritual de lanamento, tipo pegar velocidade para dar um tiro de lao. Bom, se no acontecesse comigo eu iria dizer que mentira, mas bem na hora estava passando um bando de marreco. Pois no que a chumbada acertou em cheio a cabea de um marreco e o anzol ficou fisgado na asa de outro. Dois marreces com um tiro de varejo, coisa indita mesmo, mas o mais incrvel mesmo aconteceu a seguir. Na hora que ergui as mos para os cus para agradecer a Deus pela ddiva, duas marrequinhas picaas se chocaram contra meus braos. Sa de l com a caada feita... e isso que fui s para pescar. Isso chama-se sorte, meus queridos! Mas nada, nada se compara ao correr da linha; quando a adrenalina sobe, voc se excita, puxa o canio e vem aquele peixo, que d, limpo... 250 gramas. Frustrao? Que nada, s at o prximo puxo, porque pescar isso mesmo. viver na expectativa e manter a eterna esperana de que aquele trairo de trs, quatro quilos um dia ir se fisgar no seu anzol. Enquanto isso, vamos comendo o que d, nem que seja marreco com massa...