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31/08/2010 14:14
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O dom de Machado de Assis

Sexta-feira, 27 de agosto de 2010. Incio de noite. As pessoas chegam aos poucos e o espetculo acaba atrasando. No por to pouco, contudo, que deixa de ser maior o privilgio anunciado: entre outras atraes, uma pea baseada no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no salo da comunidade Sinodal. Enquanto os preparativos so finalizados nos bastidores e no palco, a pea O dom de Capitu anunciada pela estudante Luiza Rathke, do Ensino Mdio, autora e diretora da adaptao, que contou com a superviso da professora Rejane Costa. Para quem conhece a obra do autor, a iniciativa pode parecer no mnimo arriscada; a transposio da linguagem literria para o universo teatral poderia trazer prejuzos ao estilo to caracterstico do Bruxo do Cosme Velho. Enquanto a plateia volta seus olhos para o palco, a primeira surpresa: o personagem-narrador inicia a pea caminhando por entre as fileiras de cadeiras, por entre o pblico. Dom Casmurro, nesse momento, parece ser como qualquer um de ns. E esse apenas o incio da pea. O enredo, se analisado em seus elementos primordiais, pode parecer paradoxalmente simples. O adolescente Bentinho, contra sua vontade, enviado ao seminrio, por promessa feita por sua me. Todavia, caso se tornasse padre, no poderia manter a palavra dada de casar-se com Capitu, uma vizinha e primeira namorada. No seminrio, Bentinho conhece Escobar, que se torna seu amigo mais prximo. Um vizinho convence a me do protagonista a deixar que ele no faa os votos, levando-o para estudar Direito no exterior. Passados alguns anos, Bentinho retorna e, j formado, acaba casando-se com Capitu. Escobar tambm se casa e permanece sendo um amigo ntimo do casal. Tempos depois, nasce Ezequiel, filho de Bentinho. Certo dia, Capitu chama a ateno do marido para uma semelhana entre o menino e seu amigo Escobar. esse o ponto de partida para o inferno do personagem, que no ter fim nem depois da morte dos envolvidos: seria Ezequiel realmente filho seu ou de Escobar? Todo o enredo est presente no palco, atravs de seus personagens. Pairando acima de tudo e de todos, de uma forma quase miraculosa, est o estilo inconfundvel de Machado, denso de ceticismo e de uma ironia que no deixa pedra sobre pedra. Tambm a cumplicidade com o leitor est magistralmente caracterizada na voz do narrador. Vista pelos olhos do protagonista, em idade j mais avanada, Capitu , juntamente com o personagem-ttulo, uma das figuras mais populares e complexas da literatura brasileira. Os olhos oblquos de cigana e dissimulada, os "olhos de ressaca", que parecem puxar para dentro de si quem a contempla, so os fundamentos de uma obra que j inspirou milhares de teses e que parece no se esgotar jamais. Uma pergunta pertinente seria a respeito do que faz de uma obra um clssico da literatura. So muitas as respostas possveis. Pode-se resumir dizendo que merece tal classificao um texto capaz de provocar no leitor de todas as pocas a mesma reao e o mesmo impacto do tempo em que foi escrito. Em outras palavras, so obras eternamente novas. O ponto de chegada dos autores, sua palavra final, constitui o ponto de partida dos leitores, que, debruando-se sobre os textos, produzem adaptaes como esta. Talvez este seja o verdadeiro e grande dom de Capitu, de Bentinho e de tantos outros personagens: o dom de fazer-se novos a cada leitura e, sobretudo, no encerrando sua vida quando acaba a leitura. Pois alguns personagens mais ricos possuem o raro dom adicional de ser grandes demais para se deixarem conter nos limites das pginas de um livro. Revivem a cada vez que algum, mesmo distraidamente, lana os olhos sobre as linhas e se deixa fascinar por sua histria. Seria esse o efeito dos olhos de ressaca? Sim, com inteira justia.