Logo Folha de Candelária
24/09/2010 14:21
Por:

Lembranas das enchentes que assolaram Candelria

No dia 2 de outubro do ano passado, a Folha publicou extensa reportagem sobre os 50 anos da enchente que enlutou Candelria. Em um dos textos, o que trazia por ttulo Luto Permanente, foi destacado que a tragdia ocorrida no dia 26 de setembro de 1959 jamais seria esquecida no municpio e que restaria, apenas, torcer para catstrofes semelhantes no se repetirem. Mas, por incrvel que parea, houve outra grande cheia do rio Pardo no dia 4 de janeiro deste ano - trs meses e dois dias aps a veiculao da notcia (confira pgina 9). Desta vez, no entanto, o saldo de mortos foi menor porque o nvel das guas aumentou durante o dia e a cidade dispunha de mais recursos para resgatar as vtimas. Hoje, 24, sero acrescidas informaes que a Folha s recebeu depois de a edio ter circulado entre os leitores. Cabe evidenciar que neste domingo, 26, completam-se os 51 anos daquela tragdia. Para concluir a cobertura feita em outubro de 2009, a nossa reportagem traz detalhes de como foi a recepo feita ao governador da poca, Leonel Brizola, que veio a Candelria para conferir o rastro de destruio deixado pela enchente. Alm disso, uma personagem importante da reportagem anterior - a costureira Odete Lopes Steffanello, 62 anos - conta como foi reencontrar outra sobrevivente daquele dilvio e que teve a famlia dizimada pela fora das guas. PARA LEMBRAR - Em Meio sculo da tragdia que enlutou Candelria, a Folha descreveu trechos contados por quem testemunhou de perto a agressividade das guas, o resgate das vtimas, o socorro aos desabrigados, o enterro dos mortos e o corre-corre dos administradores da poca. Foi possvel evidenciar que num tempo de poucos recursos, tanto financeiros quanto estruturais, a nica abundncia que havia era de solidariedade, tendo em vista que muitas pessoas doaram seu tempo para prestar auxlio aos flagelados. Resumidamente, pode-se reiterar que a cheia de 1959 vitimou, em hora imprecisa, dezenas de famlias ribeirinhas. Na cidade, as que moravam nas proximidades do arroio Molha Grande, e no interior, as das localidades de Costa do Rio e Rebentona, principalmente. A candelariense que recepcionou o governador Brizola A notcia de que Candelria havia sido atingida por uma enchente de grandes propores logo se espalhou por todo Estado e at mesmo fora dele. Na ltima cobertura, por exemplo, a Folha apurou que a TV Tupi de So Paulo estivera em Candelria para gravar cenas daquela tragdia e que um professor candelariense, que morava no Paran, assistiu tudo pela televiso. O fato que naquele 26 de setembro de 1959 o ento prefeito Christiano Affonso Graeff teve a difcil tarefa de comandar as frentes de resgate e auxlio s famlias atingidas. Uma de suas primeiras determinaes foi a de abrigar todos os flagelados na Escola Tcnica Rural de Candelria - hoje Lepage. O educandrio estava sob a direo de Ivo Carlos Kochenborger. Foi ele quem telefonou ao ento governador do Estado, Leonel Brizola, informando o que estava acontecendo em Candelria. Assim, em meio ao trabalho de resgate de vivos e mortos, a comunidade recebia a visita do chefe maior do Rio Grande do Sul. Brizola chegou em Candelria de helicptero pouco antes do meio-dia. Recepcionado por inmeros correligionrios e pessoas da comunidade, ele se dirigiu at a casa do diretor (hoje o local abriga a biblioteca do Lepage) para almoar. Os detalhes daquele dia so contados pela viva de Ivo, a professora aposentada Divony Freire Kochenborger, atualmente com 87 anos. "Fiz um almoo s pressas. Servi sopa, arroz com galinha, ovos fritos e salada. O Brizola at elogiou a minha cozinheira e brincou dizendo que a levaria para trabalhar com ele de to boa que estava a comida", disse Divony. Aquela refeio foi acompanhada por Orlando, o filho mais velho de Ivo e Divony, que j tinha seus 10 anos. "Sentei bem ao lado do Brizola. Durante o almoo ele perguntou se eu estava estudando e prometeu me dar uma bolsa de estudos em Porto Alegre. Por escolha da minha me, optei pelo IPA (Instituto Porto Alegre), e l cursei todo o Ginsio (atual Ensino Mdio). Depois, voltei para Candelria e estudei Contabilidade", conta Orlando Kochenborger, que hoje titular da secretaria municipal de Agricultura e Meio Ambiente. Brizola permaneceu na casa dos candelarienses at por volta das 3h da tarde e, depois, acompanhado de Ivo, sobrevoou a cidade e especialmente a Costa do Rio, localidade mais atingida, para verificar os estragos. Naquele dia, o governador prometeu destinar recursos para as famlias que estavam desabrigadas. "Ele mandou dinheiro para custear a alimentao das pessoas que estavam no Lepage porque a escola era do Estado e para construir algumas casas. Foi ento que o Ivo formou uma comisso para ficar responsvel pela aplicao do dinheiro", acrescentou Divony. "Inicialmente foram erguidas umas 24 moradias. A prefeitura tinha uma rea de terras e cedeu para aquelas pessoas", completou Orlando. A partir dali era iniciada a Vila Ewaldo Prass, hoje um dos locais mais povoados de Candelria. AMIZADE - A vinda imediata de Brizola a Candelria, logo aps o telefonema do candelariense Ivo Carlos Kochenborger, possivelmente se explica pela relao de amizade que eles mantinham. "No sei se foi uma forma de reconhecimento ou de considerao pela amizade que o Brizola tinha com meu pai, mas ele cumpriu o que prometeu", disse Orlando ao destacar que Ivo tinha influncia poltica. "Ele fundou o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) de Candelria, concorreu trs vezes a prefeito, foi vereador por durante trs mandatos, secretrio de Administrao no governo do prefeito Sebaldo Wohlenberg e diretor do Lepage durante o governo do Brizola (1959-1963)". Anos mais tarde, Ivo e Divony retriburam, de certa forma, a amizade do ex-governador. "Em 1979, quando o Brizola voltou do exlio poltico, ns fomos at o Rio de Janeiro visit-lo", finalizou Divony. Tempo depois, Brizola foi eleito governador daquele Estado (o primeiro mandato foi de 1983 a 1987 e o segundo, de 1991 a 1994). O reencontro de duas sobreviventes A costureira Odete Lopes Steffanello, 62 anos, foi uma das principais fontes destacadas na reportagem veiculada no dia 2 de outubro de 2009. Sobrevivente da enchente de 1959, ela j havia revelado detalhes da tragdia. Na noite em que as guas do rio Pardo deixaram um verdadeiro rastro de pavor e destruio nas localidades da Costa do Rio (onde morava) e da Rebentona, ela foi acordada s pressas pela me Ana Isabel. Foi com ela e seu pai, Valdevino - que j havia estranhado aquelas temperaturas mornas dos ltimos dias, e at imaginado que fosse o prenncio de que algo estaria errado -, que conseguiu se refugiar num galpo. Odete tinha apenas 11 anos na poca e no esqueceu as horas de tristeza e pavor que viveu. Tambm guardou na memria o nome de vizinhos e amigos que morreram soterrados. Entre eles os da famlia de Antnio Slvio Moreira, compadre de seu pai. Moreira perdeu a mulher grvida, trs filhos e a sogra. Outras trs crianas sobreviveram porque saram de casa antes que a gua inundasse tudo. Antnio tambm s escapou da morte porque foi arrastado pela correnteza - levando o filho mais novo erguido nos braos -, e ficou preso a um umbuzeiro. O fogo lenha que estava em sua casa o prensou contra a rvore e, por isso, no foi "engolido" pelo dilvio. J a mulher foi encontrada morta em cima do fogo. As trs crianas que conseguiram sair de casa a tempo de se salvar foram se refugiar na casa de Juvino Steinhaus, tio de Odete. Uma delas era Nair, que devia ter uns oito anos. Ela, os irmos e o pai, depois de receberem total apoio de vizinhos prximos, foram resgatados por parentes de Cachoeira do Sul. Nair foi criada por um padrinho da cidade vizinha e atualmente mora na localidade de Lima Brando, no interior de Rio Pardo. Seu endereo foi descoberto por Odete h uns trs anos. "Havia prometido para mim que um dia reencontraria Nair e seus irmos. Os nossos pais eram compadres e se visitavam seguido. Eu, meu pai e minha me ramos padrinhos de uma irm de Nair, a Sirlei, que faleceu durante a enchente", contou Odete. O dia do grande reencontro foi emocionante. "Quando cheguei na casa da Nair, um homem abriu a porta. Me identifiquei e, ao que ele disse meu nome, ela falou eu sei quem . Foi um momento muito emocionante. Descobri que ela tambm estava me procurando, mas que no tinha coragem de me encontrar. Afinal, seria resgatar um passado muito doloroso". Depois disso, Nair veio a Candelria para visitar a amiga de infncia. Juntas, elas foram at a Costa do Rio visitar o local onde moravam - o cenrio da tragdia - e o cemitrio onde foram enterrados os familiares. "A Nair olhava tudo indicando com detalhes onde ficava a casa, o galpo da famlia, mas no falou muito dos anos que se seguiram aps aquela enchente", acrescentou Odete. REGISTRO - Desde o reencontro, Odete tem mantido contato com Nair. Neste ano, pouco antes de ocorrer a segunda grande cheia do rio Pardo, a candelariense esteve novamente na localidade de Lima Brando. E desta vez fez questo de registrar, em fotos, o encontro. Algumas destas imagens foram cedidas gentilmente Folha nesta semana. Nair casada com Orlando Kunde, com quem teve dois filhos e mantm uma casa de comrcio no interior de Rio Pardo. Agora, Odete espera por outro encontro. "A Nair ficou de reunir seus outros irmos que sobreviveram e de me chamar para rev-los", disse. HELICPTERO - Sobre a visita de Brizola, em 1959, Odete comentou que quando o helicptero comeou a sobrevoar a rea foi outro susto. "Ningum sabia o que era aquilo. Lembro que o helicptero pousou no potreiro do meu tio Gomercindo Ferreira Lopes". O pai de Odete, seu Valdevino, ajudou a fazer o levantamento das perdas dos vizinhos para que o governo do Estado pudesse destinar recursos s famlias atingidas. Na Costa do Rio, Odete disse no saber se algum morador foi beneficiado com recursos. As marcas deixadas pelas maiores cheias 26 de setembro de 1959 - noite, em hora imprecisa, uma avalanche de gua, que ganhou fora pelo desmoronamento de morros e encostas, deixou um rastro de muita tristeza. Casas foram destrudas e arrastadas com seus moradores; lavouras, animais e paiis simplesmente desapareceram em meio correnteza. Os mais atingidos foram os ribeirinhos. Maioria deles morreu soterrada. Conta-se que s na regio de Serra Velha, interior de Sobradinho, nas proximidades da divisa com a Costa do Rio, 40 pessoas morreram. Ao todo, a enchente matou cerca de 100 pessoas. 4 de janeiro de 2010 - Chuvas ininterruptas comearam na madrugada do dia 4 e seguiram at o dia seguinte fazendo com que os pluvimetros atingissem a marca de 250 milmetros. Nos municpios da regio serrana, onde os arroios desembocam no rio Pardo, o ndice foi superior a 300 milmetros. As guas subiram to rpido que chegou at mesmo a se cogitar que uma represa tivesse se rompido na regio. O fato, no entanto, foi desmentido. Prximo ao meio-dia o rio Pardo estava com nvel impressionante de gua. Enquanto uma equipe do Corpo de Bombeiros Voluntrios de Candelria comeava a retirar de casa os moradores da rua da Praia, outra era acionada para resgatar trs homens que foram cercados pelo rio Pardo, na Linha do Rio, ao tentar arrebanhar algumas cabeas de gado. O agricultor Hari Kappaun morreu afogado. Seu corpo foi encontrado no dia seguinte, a 500 metros de sua casa. A enchente deixou pelo menos 300 famlias desabrigadas, prejuzos considerveis nas lavouras e nas criaes, destruiu vrios trechos do asfalto da Linha do Rio. Nesta localidade, principalmente, o cenrio visto no dia seguinte era de "verdadeira guerra", com dezenas de rvores espalhadas em meio pista e s lavouras. Os atingidos foram resgatados e amparados, receberam auxlio da Defesa Civil do Estado, pleiteados pela prefeitura de Candelria, e doao em mveis e eletrodomsticos da Philip Morris do Brasil. O municpio recebeu, em vista desta enchente de janeiro, R$ 700 mil para a recuperao dos estragos. No interior, as localidades mais atingidas foram a Linha do Rio, Linha do Sul, Quilombo, Passa Sete, Costa do Rio, Rebentona e Alto Passa Sete.