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Geral 09/12/2019 14:08
Por: Luciano Mallmann

Os diferentes processos de Franz Kafka

Nos tempos do extinto Orkut, diversas comunidades se dedicavam a discutir a obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), abarcando suas mais variadas formas de interpretação. Havia um grupo, porém, que se punha a enumerar alguns dos aspectos mais característicos desse autor, reunindo-se em outra comunidade, intitulada, com muita propriedade, “Eu odeio Franz Kafka”. Como se tivesse nascido no mundo exclusivamente para tal finalidade, o grupo comprazia-se simplesmente em ter por Kafka um ódio mortal. E, ao odiá-lo, fazia-o com a mesma pose de quem se dedica a algo construtivo. De modo semelhante ao que acontece também com Clarice Lispector, talvez não haja outro autor que mobilize tanto a agressividade e as defesas do público leitor quanto Kafka. O fato de tantas pessoas encontrarem um sentido em odiar de modo sistemático suas obras sempre me pareceu extremamente eloquente – em se tratando de Kafka, não poderia deixar de sê-lo. Como a grande maioria dos clássicos, a genialidade do autor tcheco é inegável, e suas obras, no mundo inteiro, são reconhecidamente obras-primas. E o fato de haver pessoas que o odeiem, por fim, acaba dizendo mais a respeito de quem nutre esse sentimento negativo do que acerca do próprio escritor odiado. Por outro lado, eu sempre tive, na época, um prazer raro e particular em observar os desdobramentos das atitudes de tais pretensos detratores e, ao mesmo tempo, em procurar nas próprias obras de Kafka as razões de tanto ódio. E tanto uma coisa como a outra sempre me pareceram um tanto óbvias. Enumerá-las constitui tarefa fácil.

A famosa definição de Kafka para a arte e, mais especificamente, para a literatura, está em ser a obra, ou o livro, um machado para quebrar o imenso mar de gelo que habita em nós. Nada mais correto, ao menos quando aplicado a títulos como O processo, A metamorfose, Na colônia penal, entre tantos outros, todos eles obras brutais e viscerais. Talvez os motivos do ódio de alguns leitores esteja em ser Kafka, possivelmente, o mais verdadeiro e o mais sincero entre os escritores de todo o mundo e de todos os tempos. Porém, não se deveria odiar quem se propõe, antes de tudo, a ser tão honesto. Essas qualidades se veem na maneira generosa e dedicada como Kafka nos fala da existência humana tal como ela é, surreal, como se acabássemos de despertar de um sonho – ou como se, já despertos e conscientes, déssemos continuidade, em estado de vigília, à experiência entressonhada. Outro fator desencadeante de uma possível antipatia é o fato de Kafka dedicar-se a uma descrição impressionantemente nítida da existência humana, sem se deter em nos fornecer qualquer aviso prévio da dor ou mesmo da perplexidade que advirá da leitura de suas obras. Em nenhum momento ele nos aconselha a irmos devagar, considerando que a experiência será dolorosa. Quem o conhece pode dizer: de uma forma ou de outra, sempre irá doer. Franz Kafka, antes de tudo, é um escritor que nos prova que a leitura pode ser muito mais que a mera decodificação de palavras impressas nas páginas de um livro. Trata-se, isso sim, de uma experiência de vida que, uma vez levada a cabo, jamais será esquecida.

Mas os leitores que se comprazem em odiar quem só merece reverência deveriam ser esquecidos, ou ignorados, e não lembrados, como é o caso aqui. Se os usei como exemplo, é porque seu comportamento é amplamente sintomático de um aspecto humano que Kafka sempre procurou destruir – e sempre o fez com maestria -, e que se resume em apontar a adoção, por muitas pessoas, de crenças confortáveis e certezas seguras a que tantos aderem e defendem mortalmente como verdades absolutas. E ao final da leitura, por exemplo, de O processo, pouco sobra dessas certezas – e se sobrar, é porque a leitura não foi muito atenta. O próprio leitor, a certo ponto, se estiver lendo corretamente, irá se interrogar que estranhas metamorfoses andaram ocorrendo em seu modo de ser e de pensar enquanto fazia sua leitura. E pode-se dizer, ao menos no caso de Franz Kafka, que permite tantas interpretações quantos são os leitores, que todas as leituras são corretas. O leitor, tornado mais maduro ao contato com suas palavras, irá se deparar com incertezas que antes não existiam, além de perceber que passou a abrigar um sentimento de instabilidade que antes desconhecia. E perceberá também, talvez um tanto incrédulo, que a dúvida e essa instabilidade são não apenas pré-requisitos, mas componentes da lucidez em relação ao mundo, à vida e ao humano. É preciso esclarecer algo: Kafka não se detém em destruir certezas, pois em nenhum momento ele se refere especificamente a elas. O modo de Kafka de abordar a realidade é passar ao largo das verdades estabelecidas, sem delas tomar conhecimento. Diante de toda essa sinceridade, em vez de odiar, parece mais adequado amar, e muito, um autor que consegue fazer da mente do leitor um terreno fértil para o seu crescimento como ser humano. É quando o pensamento passa a ser constituído também de dúvida que ele é levado a questionar o mundo à sua volta e sua própria essência como pessoa, ou seja, o estado de espírito básico para a construção de uma ética que servirá tanto para nos relacionarmos com nós mesmos como com o próximo. Quando o que se possui são as certezas inabaláveis, não há espaço para qualquer questionamento, e é de se perguntar que verdade pode advir daí. Porque, para que algo de sólido seja construído, tudo que antes havia deve ser destruído. De modo especial, as certezas e convicções.

Entre tantas obras fundamentais, é difícil dizer o que há de melhor na produção de Franz Kafka. Temos a história de Gregor Samsa, que, um belo dia, amanhece metamorfoseado num inseto; há a longa carta dedicada ao pai (que nunca foi entregue), a descrição do instrumento de tortura de Na colônia penal. Porém, pelo universo em que vive, talvez o personagem mais emblemático seja mesmo Joseph K., protagonista de O processo, que certa manhã, quando se prepara para ir ao trabalho, recebe na pensão onde mora a visita de oficiais que lhe comunicam que, a partir daquele momento, está sendo processado. O processo narra a saga que se inicia para Joseph K. naquele dia, em busca dos motivos que levaram a tal processo. O romance constitui também o processo de declínio de Joseph K. que se inicia no momento em que este sabe da sua condição de culpado de um crime cuja natureza ele próprio ignora, mas de que todos à sua volta sabem. É a história de uma busca incessante por respostas, uma busca pela verdade que só será interrompida na gélida e inesquecível cena final. Do lado de cá da realidade, O processo não deixa de ser a nossa história como leitores, entretidos com uma das maiores obras-primas já escritas, talvez mais atual hoje do que quando foi criada, obra que cairá sobre nós, imensos mares de gelo, como um enorme e pesado machado a esfacelar tudo que tivermos na conta de tábuas de salvação às quais porventura nos agarramos em busca de alguma inútil certeza.