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Geral 05/06/2020 08:57
Por: Redação

Intolerância: precisamos falar de racismo

As imagens de um negro sendo pisoteado e morto por asfixia por um policial ganharam as redes sociais e geraram uma onda de protestos nos Estados Unidos

  • Onda de protestos contra o racismo começou nos EUA e se espalhou pela Europa
  • Covardia: imagem do flagrante da morte por asfixia de George Floyd
  • Rejâne da Silva: herança escravagista
  • Douglas da Rosa: ignorância gera o preconceito
  • Telda dos Anjos: racismo gritante no Brasil
  • Lauro Gomes: “protestos não são de um só povo”

As imagens de lugares vazios tão comuns nestes dias de distanciamento social por causa da pandemia do coronavírus deram lugar à aglomerações nas ruas em diversas cidades dos Estados Unidos nos últimos dias. Essa mudança no cenário, repercutida pela imprensa e nas redes sociais, foi motivada por protestos antirracistas. Os manifestantes foram às ruas pedir justiça pela morte de George Floyd, um segurança de 46 anos, negro, morto na última segunda, 25, por um policial na cidade de Minneapolis, no estado do Minnesota. A cena em que Floyd é algemado, jogado ao chão e asfixiado foi gravado e divulgado nas redes sociais. O flagrante tornou-se o estopim para uma série de protestos que se espalharam pelo país e se estenderam pela Europa. As manifestações trazem de volta um comportamento que não se restringe aos Estados Unidos, mas que, infelizmente, está muito presente e enraizado também na sociedade brasileira: a intolerância racial. Muitas pessoas não gostam do tema, apresentam distorções a respeito ou tentam minimizá-lo. Possivelmente assim agem porque nunca sentiram a triste – para dizer o mínimo – experiência de sofrer preconceito pela cor da pele. Esta reportagem pretende trazer para mais perto esse debate originado por uma cena absurda e revoltante, que faz gritar a necessidade afirmada no título: precisamos falar de racismo.

E, para abordar o tema, a reportagem resolveu colher depoimentos de pessoas de cor negra, moradores de Candelária. Através dessas impressões, queremos obter um olhar de quem vive perto de nós a respeito desse odioso sentimento, o racismo, muitas vezes não confessado, mas que se manifesta de diferentes formas. Possível eco de uma sociedade outrora escravocrata, com marcas ainda profundas nos dias de hoje, é preciso sempre lembrar que, num Estado democrático, o racismo constitui crime inafiançável, e não é à toa que assim seja considerado. Isso pelo simples fato de em pleno século 21 serem inaceitáveis certos tipos de comportamento, e o racismo é o primeiro entre eles.

Para o servidor municipal Lauro Gomes, de 44 anos, os protestos globais não são de um povo só. “São várias etnias que se unem através da mesma finalidade, defendendo a liberdade e querendo a igualdade social e racial”, salientou. Já a professora Telda Maria dos Anjos, 65 anos, critica a cultura norte-americana contra a raça negra que tacha os desempregados como bandidos e de má índole os pobres e sem escolaridade. Para ela, as manifestações se levantam contra essa situação, que se repete a todo momento. Formado como técnico em segurança do trabalho e que exerce atualmente a profissão de conferente em uma transportadora, Douglas Ribeiro da Rosa, de 34 anos, entende que todas as manifestações pacíficas são válidas para chamar a atenção das autoridades. No entanto, conforme argumentou, os anos passam e nada é feito para diminuir ou eliminar a violenta abordagem policial em pessoas negras. “Com inúmeros casos se repetindo, é compreensível que os protestos sejam cada vez mais violentos, pois a população negra está apenas reagindo à truculenta e assassina ação policial americana”, concluiu. De acordo com a professora Rejâne Maria da Silva, 53 anos, a morte de George Floyd, infelizmente remete ao preconceito silencioso direto ou indireto que os negros passam no seu dia a dia. “Essa morte brutal nos faz repensar que em pleno século XXI, as pessoas de pele preta ainda são as mais visadas, pois o índice de violência é alarmante, também no Brasil.” Ela lembra, porém, que muitos casos com vítimas que sofrem violência não são repercutidos pelas mídias, ficando somente nas estatísticas.

Questionado se é importante debater o racismo também no Brasil, Lauro Gomes respondeu tratar-se de um tema, cuja discussão será sempre válida. No entanto, ele acredita que a transformação de um povo se dá através da educação. “O racismo vem de casa, de dogmas pré-estabelecidos, da falta de humanidade e da hipocrisia que leva alguém a acreditar que um homem é inferior a outro pela cor da pele”, acrescentou. Para a professora Telda, o racismo no Brasil é muito gritante, incluindo pessoas da própria raça negra, que não aceitam a sua negritude. A falta de uma política social mais efetiva dos governantes também lhe causa revolta, uma vez que dificulta aos negros o acesso à escolaridade e, em consequência, a melhores condições profissionais. Douglas da Rosa entende que o primeiro passo é o país se assumir como uma nação racista, para então entender como o racismo opera em nosso meio e, posteriormente, combatê-lo. “Se continuarmos negando a existência do racismo, ele nunca terá fim”, observou. Para ele, o racismo está preso ao ignorante que é preconceituoso com aquilo que não conhece. “Quando entendermos que só há uma raça, que é humana, podemos começar a derrubar as barreiras criadas pela exploração e colonização dos africanos e seus descendentes”, sustentou. Por sua vez, Rejâne da Silva lembra que o Brasil esteve entre os últimos países a abolir a escravidão, sendo que culturalmente existe uma herança escravagista, sentida até os dias atuais. Ela acredita que é preciso falar sobre racismo, pois é um assunto que há necessidade de ser conhecido, debatido e desconstruído. Essa fala deve ser realizada no núcleo familiar e também no âmbito escolar, não como algo pontual, somente na Semana da Consciência Negra. “É preciso valorizar a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, assim como ter propostas pedagógicas para as questões de racismo que possam surgir no ambiente escolar”, finalizou.

Os relatos de quem sofre o racismo na pele

Nas discussões sobre o racismo, é consenso de que o preconceito tem contornos culturais no país e, muitas vezes, é manifestado de forma disfarçada em nosso meio. Porém, invariavelmente, todos os negros no Brasil já vivenciaram uma experiência mais direta e ostensiva de racismo. Perguntamos aos nossos entrevistados como é viver isso na pele. Confira as respostas.

Lauro Gomes – “É impossível um homem preto não sofrer racismo em sua existência. Eu sofri inúmeras vezes: naquela voz na torcida do futebol me chamando de macaco, na piada maldosa, na fila do supermercado, no banco do ônibus... E a minha resposta é ser um bom profissional, um bom filho e cidadão, é fazer o racista ver que apesar de tamanho ódio depositado na minha raça o preto educou seu filho, o preto lhe tratou com igualdade, o preto demonstra até maior sabedoria que ele e que o preto está em um lugar acima da ignorância. A minha resposta ao racista é: eu permaneço aqui pelo ser humano que sou e não pela minha cor.”

Telda Maria dos Anjos – “Eu já senti certo ofensas raciais, mas jamais fico calada. Eu também tenho meus direitos como ser humano acima de tudo. Isso depende da aceitação da cor, empatia e cabe à família essa orientação desde pequenos tanto para negros, brancos, ricos e pobres.”

Douglas Ribeiro da Rosa – “Conforme vamos crescendo nos encontramos com o racismo. Na escola geralmente acontecem os primeiros casos. Quando querem te insultar, chamam de “nego sujo”, crioulo, macaco, entre outras coisas. No esporte é a mesma coisa: te ofendem com racismo e não te dão o direito de ficar bravo, pois não é uma conduta esportiva revidar as ofensas raciais. Viver isso na pele é muito doloroso, pois apesar de toda informação, educação e conhecimento, a paulada do racismo bate forte. Quando acontece com qualquer um, todos nós pretos sentimos o baque. Choro muito lendo casos de racismo, ou vendo reportagens na TV e internet. Por mais preparado que estou, mexe muito comigo. Ainda não estamos prontos para tratar o racismo com a devida importância, pois é um crime e os criminosos deveriam ser punidos. Na verdade, o racismo é o único crime que se é absolvido por um pedido de desculpas em uma nota pública, ou com a desculpa que foi apenas uma fala equivocada e que não se repetirá. Quando realmente punirmos os racistas de uma forma mais severa, estaremos no caminho certo.”

Rejâne Maria da Silva – “Já tive a infelicidade de escutar que racismo é coisa da nossa cabeça. Porém, somente sabe o que é racismo quem já sofreu o racismo na pele. Sofri racismo na infância, na adolescência e hoje continuo sofrendo o racismo muitas vezes de forma camuflada. Parafraseando Martin Luther King, eu tenho um sonho de ainda ver as pessoas não serem julgadas pela cor da pele.”