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Colunista 27/09/2017 07:04
Por: Marcos Rolim

Sobre a intolerância e o ódio

(Publicado originalmente no jornal ExtraClasse)

 

Quanto menor é o coração, mais ódio carrega

Victor Hugo

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) instalou, recentemente, o seu Comitê contra a Intolerância. A iniciativa é uma resposta institucional a manifestações de ódio e a provocações de perfil fascista que já ocorreram nos campi. Com o Comitê, se pretende desenvolver atividades preventivas e de formação que afirmem a cultura de paz e que valorizem a tolerância diante das diferenças. Outra missão do Comitê será a de receber denúncias de tal forma que se instruam processos administrativos para a responsabilização dos autores de práticas discriminatórias e/ou violentas. convite da reitoria, realizei, na oportunidade, uma conferência sobre o tema, propondo uma reflexão sobre os conceitos e as origens da intolerância e do ódio.

Elie Wiesel, um dos sobreviventes dos campos de concentração e Nobel da Paz em 1986, disse que a intolerância está situada no início do ódio. A relação me parece correta. A intolerância é uma indisposição diante do outro; uma variedade da impaciência que autoriza a separação, a não-convivência, o isolamento e o desprezo. O ódio vem depois. O ódio é uma escada na qual se sobe ou não. O problema é que, depois que subimos, é difícil descer. Para vencer o ódio é preciso impedir que se suba o primeiro degrau da escada.

O ódio pode ser definido como uma disposição favorável à destruição do outro. Ele tem parentesco com a raiva e, desde um ponto de vista evolucionário, sabemos que a raiva é uma emoção primitiva, desenvolvida em nosso sistema límbico, particularmente nas amígdalas cerebrais, onde estão também os mecanismos que nos permitem outros sentimentos básicos como o medo. O ódio, entretanto, é mais do que uma decorrência da luta pela sobrevivência e Darwin reconheceu que ele é muito mais complexo que a raiva e o medo. O ódio talvez seja a raiva transformada em conceito. O que há de pontual e explosivo na raiva, adquire o sentido da permanência e da frieza com o ódio. É possível que o ódio seja o mais potente sentimento de hostilidade que os humanos são capazes de produzir. Pensado por este caminho, não deve haver sentimento paralelo nas demais espécies animais conhecidas.

Há algo em comum entre o ódio e a intolerância e se pode observar isso quando nos damos conta de que eles se encontram no plural. Como regra, os dois sentimentos se manifestam diante de grupos que seriam definidos por características vergonhosas e/ou ameaçadoras. Um racista odeia os negros, os índios, ou os judeus, não um negro em particular ou este índio ou este judeu. O mesmo vale para as demais formas de ódio e intolerância que se obrigam a lidar com estereótipos, não com pessoas concretas. Aqui, a biologia se cruza com a cultura, porque intolerância e o ódio precisam ser ensinados. As crianças, por isso mesmo, embora possam ser perversas, não são intolerantes. Para que a intolerância se construa e se transforme em ódio, é preciso, afinal, uma base teórica-discursiva, ainda que rudimentar.

Entendo que a primeira tradição a oferecer esta base é o fundamentalismo religioso. Para o fundamentalista, quem discorda já está no pecado. Há mesmo uma contradição básica entre fé e debate. Pelo debate, admitimos que nossas perspectivas são sempre parciais e, portanto, unilaterais. Por isso, ouvimos com atenção as posições diversas e, se temos a pretensão de influenciar os demais, então temos a obrigação moral de admitir a possibilidade de sermos influenciados pelos outros. Sem isso, não haverá debate, mas um ritual hipócrita. Pela fé, há uma verdade revelada à qual devemos aderir, o que é exatamente o contrário do debate.

A outra tradição que alimenta a intolerância e o ódio são as ideologias. Para a perspectiva humanista, as pessoas nos oferecem uma dimensão a ser respeitada incondicionalmente. Algo que, em termos pagãos, poderíamos denominar como “sagrado” e que Luc Ferry, retomando Nietzsche, definiu como “aquele limite que não se poderia ultrapassar sem entrar na esfera do mal absoluto”. As concepções políticas anti-humanistas, à direita e à esquerda – aquelas que estiveram na fundação das experiências totalitárias – recusam precisamente este limite. Para elas, os humanos se definem sempre pela particularidade (pela “nacionalidade” ou “raça” para o nazismo, pela “classe” ou “alinhamento político-ideológico” na tradição comunista) e só existem na condição de meios para seus fins. As ideologias portam a pretensão de uma explicação total e, por isso, tendem a um processo de autonomização diante da experiência, libertando-se daqueles fatos que poderiam contestar ou relativizar seus pressupostos. O resultado, todos conhecem, são legiões sectárias cujos membros recusam tudo o que não for espelho.