Logo Folha de Candelária
Opinião 11/12/2017 09:43
Por: Luciano Mallmann

Os natais de nossos antepassados

É possível que a proposta, em inúmeros sentidos, e não apenas na esfera da arte musical, fosse exatamente esta: seja qual fosse a atividade, levar as pessoas ao último limite do humanamente possível (Luciano Mallmann)

Texto: Luciano Mallmann

Foto: Acervo de Orestes Mallmann

Há muito tempo tenho o hábito, no início de dezembro, de escrever uma crônica sobre este que é um dos períodos mais belos do ano e também na vida de cada um: o Natal. A tarefa não é difícil, e, talvez porque o tema seja tão rico, raramente preciso parar para pensar sob qual perspectiva irei abordar o assunto, pois basta iniciar o texto que as palavras, como que repentinamente dotadas de vontade própria, ditam os rumos das frases e expõem, algumas vezes sobrepostas, as ideias, que, à exceção do tema em comum, poucas vezes se repetem. É uma fluência que se deve à riqueza do tema, e não teria muitas razões para pensar que em 2017 seria diferente. Acontece, contudo, que este foi um ano em que os imprevistos, que já são por si um fator intensificador além do que se pode prever, trouxeram momentos, se não difíceis, no mínimo desafiadores. No que diz respeito ao trabalho de pesquisas, foi fascinante ter passado o ano em meio aos mais diversos registros, fotografias, verificando datas e nomes em cemitérios, fazendo entrevistas e buscando vestígios que talvez ainda ontem estivessem ali, mas que o intervalo de poucas horas, infelizmente, fez de nossa presença um elemento tardio – instante a partir do qual é preciso escrever, literalmente, a respeito do que apenas se ouviu dizer. Além disso, os mais próximos não ignoram que, entre estes tantos momentos, houve um que me levou a pensar que talvez eu nem sobrevivesse para testemunhar a chegada de 2018. Mas como tudo, enfim, que vem deixar em nós sua marca e ensinar alguma lição, penso que isso também passou. E assim, de início um tanto atordoado, retornei às pesquisas. A partir de então não mais como quem faz uma única reportagem diferente, a fim de diversificar a pauta, mas sim como quem adota um modo de vida agora definitivo.

Creio não haver erro no raciocínio segundo o qual quem um dia voltou os olhos para o que restou do passado, para o que é histórico e, por vezes, para o anacrônico, ao mesmo tempo em que se deparou de frente com a morte, este alguém perdeu, talvez para sempre, a inocência do olhar. Porque, a partir de então, passou a ser sempre possível, a esses olhos, vislumbrar os resquícios do passado presentes no arcabouço contemporâneo, enquanto o presente vive sua incessante passagem de presente para pretérito – o presente em sua infinita agonia de tornar-se passado. Assim, enquanto se lança um olhar mesmo superficial para o aqui e agora, ou seja, para o nosso próprio tempo, sempre haverá nesse vislumbre, além de uma despedida, uma comparação entre o ontem e o hoje. Lamentos são comuns nesses olhares, em geral por tudo que não se encontra mais ao alcance do olhar. No período que antecede o Natal, a emoção se potencializa e se torna comoção, pois o que se perdeu inclui pessoas, cuja falta, nessa época, costuma doer um pouco mais. Mas a vida segue seu curso, enfim, e eis que nos deparamos com um curioso paradoxo: ao mesmo tempo em que constatamos ter perdido muito, e de maneira irrevogável, por outro lado, através do trabalho de pesquisa, adquirimos um conhecimento sobre algo que antecedeu nosso próprio nascimento, e que sempre esteve lá, à espera de ser descoberto. E é na companhia desse conteúdo conquistado, além do que já se encontrava em nossas mãos, que desejamos vivenciar o Natal de 2017: tendo em mente o passado que resgatamos e ao qual restituímos vida e sentido através de nossos textos.

Algumas das figuras de que tomamos conhecimento nas pesquisas são, entre inúmeros outros, Christian Friedrich Wilhelm Zühl (1815-1871) Johann Friedrich Wilhelm Karnopp (1812-1886), Johann Karnopp (1836-1920) e também Auguste Tech, todos nascidos na Alemanha, no século 19, de onde, em fins da década de 1850, partiram para outras terras em busca de dias menos difíceis. O imenso volume de trabalho que tiveram, logo ao chegar, constituiu objeto de pesquisas e de reportagens veiculadas ao longo do ano de 2017 pela Folha. Sobre todo o trabalho desses novos cidadãos, diga-se que, depois da viagem e do desembarque, um novo ciclo iniciou na existência desses que mencionamos e de tantos outros que fizeram a travessia. A partir de então, a vida desses desbravadores passou a ter um detalhe pungente: um dos significados da palavra natal é de adjetivo que designa lugar de nascimento, como na expressão “solo natal”. Em alemão, trata-se da amada Heimatland, ou seja, a Alemanha, que, para os imigrantes, não pudera fornecer o sustento, tornando-se para muitos deles uma ferida aberta. Não raras vezes, saudade é coisa que dilacera. Uma nova Heimat, caso isso fosse possível, precisava ser criada, ao custo de extremo esforço. Mas as pausas para os feriados religiosos eram respeitadas com rigor. É lícito interrogar, nesse sentido, como foi o primeiro Natal de cada leva de imigrantes que aqui aportava. Como se pode ver nas cartas de imigrantes na obra Os Caminhos da Família Gewehr, de Lúcia Hilda Gewehr Steil e Derti Jost, é de se imaginar que tenham sido dias de total submissão à vontade de Deus. Ainda a respeito de terra natal, é sempre válido lembrar uma frase da imortal escritora francesa Marguerite Yourcenar: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente sobre nós mesmos”. De qualquer forma, todos essas personalidades mencionadas encontram-se agora em sua última morada, e uma das características da terra, tanto aqui como do outro lado do oceano, é a de simbolizar o ventre materno, ou a figura da mãe – que gera vida e é nutriz. De um modo geral, é possível dizer que, antes do momento da morte de cada um desses imigrantes, depois de muito labor, devem ter sido poucos os que não tenham erguido os olhos ao céu e dirigido profundos agradecimentos a Deus e à própria iniciativa da viagem transoceânica.

Sobre os primeiros natais dos imigrantes em solo brasileiro há muito a imaginar e pouco, de fato, a contar como verdade oficial. Sabe-se, todavia, a respeito da profundidade do fervor religioso com que os alemães e seus descendentes celebravam o Natal e viviam suas existências. Em termos práticos, pouca coisa mudou até as primeiras décadas do século 20. Em minha família, lembro dos presépios montados por minha avó materna, que chegavam a ocupar paredes inteiras de sua residência. Os mais velhos dão testemunho de missas do galo celebradas pontualmente à meia-noite de 24 de dezembro, com a presença de toda a comunidade e cercanias. (A respeito de quem não comparecia, inclusive, as opiniões não eram muito favoráveis). Há relatos acerca da igreja católica de Santa Clara do Sul, com a capacidade lotada, na noite de Natal, muito iluminada, decorada com duas grandes árvores de Natal, o espaço tomado pela ressonância do canto coral, com as vozes das sopranos elevando-se a alturas celestiais e mesmo antes impensáveis. Pois a revolução ocorrida na arte do canto na Alemanha, na segunda metade do século 19, foi um divisor de águas tão expressivo que até os hinos religiosos sofreram sua influência. As exigências que se faziam principalmente às vozes agudas eram severas. Acerca daqueles agudos, é verdade que o corpo de início se ressentia do esforço, mas em pouco tempo a música já se apoderava daquelas gargantas abençoadas. Não eram poucos os solistas que se queixavam de que os agudos ficavam muito próximos do limite do alcance de suas vozes. Porém, é possível que a proposta, em inúmeros sentidos, e não apenas na esfera da arte musical, fosse exatamente esta: seja qual fosse a atividade, levar as pessoas ao último limite do humanamente possível. Se se observar, até mesmo na vida mais prosaica, com sua rotina cotidiana, existem de fato momentos em que se exige de nós que ultrapassemos nossas próprias capacidades. Na arte da música, para mantê-la como exemplo, à parte as queixas de cantores, se percebe que o canto chegava às portas do celestial. Pode-se concluir que, quando os homens reconhecem algo como sendo sagrado, sejam templos, hinos, noites estreladas, vozes, corações, vinho e pão, tudo se transfigura, e, se for necessário, se transubstancia, mostrando que o ser humano pode, sim, ser muito melhor.

No ano de 1885, fixou residência na bela e poética localidade de Santa Clara, interior de Lajeado, um homem chamado Johann Peter Mallmann. Tratava-se de meu trisavô. Acompanhado de sua jovem esposa Elisabetha (nascida Bender) e de seus numerosos filhos, Johann assumiu o ofício de sacristão e dirigente do coro. O templo, nessa década, era mais simples, o que, no entanto, não impedia que o senso de religiosidade, ou a vida espiritual, enfim, fosse profunda e intensa. Nascido em Blankenrath, Alemanha, ele desembarcou no Brasil em 1863, indo residir primeiramente em Tupandi, Montenegro. Excetuando-se o trabalho como sacristão e regente do coro, atualmente não se sabe muito mais a respeito de Johann Peter. Contudo, é possível ver na fotografia do casal a personificação de uma série de significados que foram se perdendo aos poucos, a uma velocidade vertiginosa. Acima de todos os outros valores, está a espiritualidade, vivida a cada dia, incorporada ao trabalho diário, constituindo um histórico que orgulha qualquer descendência. De resto, a submissão à vontade divina se percebe na expressão um tanto cansada, porém satisfeita, tanto de Johann como de Elisabetha. É possível que, ao longo de uma vida de sacrifícios, a alma se ressinta dos esforços. Porém, ninguém disse que a alma envelhece. Depois de desafios imensos, vencidos um a um, sobrevém uma velhice comovente, de quem se resigna com sabedoria ao aspecto de finitude da vida humana. Em seus olhares, pode-se ver a certeza de que muitos desafios, caso fosse necessário, ainda poderiam ser aceitos e vencidos. Possivelmente, o significado da frase de Marguerite Yourcenar já era conhecido por eles antes mesmo de ter sido escrita. Ainda sobre as feições de Johann Peter e de Elisabetha, na pose para a fotografia, se vê que, perto do final de suas vidas, é possível lançar um olhar sereno para o passado, com a alma repleta de paz, com plena consciência de que o coração, tendo conquistado o direito ao repouso, aguarda em paz a sua hora. E a nós, resta o sentimento de profunda gratidão e o desejo de que Deus os tenha junto a Si, em profundo e eterno descanso.