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Opinião 26/10/2020 09:29
Por: Luciano Mallmann

Leituras universais: o papel dos livros em tempos de crise

  • André Kertesz: Sanatório de Beaune, 1929
  • Pierre-Auguste Renoir: A leitora, 1875
  • Pierre-Auguste Renoir: Almoço em Berneval, 1898

“O livro é muitas coisas”, escreve o ensaísta argentino-canadense Alberto Manguel. “Como um repositório de memória, um meio de transcender os limites do tempo e espaço, um local para reflexão e criatividade, um arquivo da nossa experiência e da dos outros, uma fonte de iluminação, felicidade e, às vezes, consolo; uma crônica de eventos passados, presentes e futuros, um espelho, uma companhia, um professor, uma invocação dos mortos, um divertimento, o livro, em suas várias encarnações, da placa de barro à página eletrônica, tem servido há bastante tempo como metáfora para muitos de nossos conceitos e realizações essenciais”. Entre tantas outras definições, o livro já foi descrito como a mais extraordinária das criaturas não humanas. E não surpreende que tenha sido assim conceituado. Porém, por mais que essas definições sejam significativas e eloquentes, observar o uso dos livros em diferentes períodos da história pode nos oferecer um panorama mais nítido, ou ao menos mais lúcido, de suas inúmeras possibilidades.

Pode-se tomar como exemplo a leitura nos mais diversos contextos de crise e observar o papel que os livros desempenharam nesses diferentes momentos. É válido observar, em primeiro lugar, o relato de Martine Poulain sobre o período que se sucedeu à queda da Bolsa em Nova Iorque, em 1929: “Nos anos 1930, nos Estados Unidos, a crise, segundo várias análises, levou milhares de norte-americanos para as bibliotecas. (...) Às vezes, os desempregados buscavam na leitura uma oportunidade de se distanciar do real e de sua própria situação, esperando que ela os levasse para ‘fora do mundo’. Às vezes, esperavam o contrário, que os mantivesse ‘dentro do mundo’”. Várias décadas mais tarde, no mesmo país, nos dias que se seguiram ao atentado de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, em um tempo em que as mídias audiovisuais já eram um elemento fortemente presente, uma multidão acorria às livrarias e às bibliotecas nova-iorquinas, ao mesmo tempo em que a frequência em todos os outros comércios diminuía. De acordo com uma reportagem veiculada na época pelo jornal francês Le Monde, o público se voltava à leitura para buscar compreender aquele período. Essa necessidade de respostas perdurou nos meses seguintes: após o primeiro impacto, as pessoas foram procurar os livros para superar as dificuldades e os consequentes estados de perplexidade.

Porém, mais do que tentativas de encontrar explicações ou superar as adversidades, impressiona verificar o papel da leitura nas situações a que algumas parcelas da população mundial foram submetidas em dois momentos cruciais do século 20, em alguns dos períodos mais atrozes de que se tem notícia até hoje na história. O primeiro exemplo, da época da Segunda Guerra Mundial, nos é dado pelo escritor italiano Primo Levi, que, em sua obra É isto um homem?, relembra seus anos como prisioneiro do campo de extermínio de Auschwitz, lugar em que costumava recitar trechos de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, a seu amigo Pikolo. Enquanto isso, no mesmo campo, os companheiros de Robert Antelme rememoravam poemas que transcreviam em pedaços de cartão, resgatados do depósito da fábrica. Outro exemplo é dado pela ganhadora do Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Alexiévitch, em sua obra dedicada aos testemunhos de crianças na Segunda Guerra, mais precisamente o relato de Thais Nasvetnokova, que recorda o inverno de 1941, na Rússia: “Lembro que todo mundo lia... muito... eu nunca vi isso... esgotamos a biblioteca destinada às crianças e aos adolescentes. Então nos permitiram ler os livros dos grandes”. Dispomos ainda do testemunho de Stéphane Hessel, que, ao referir-se à sua deportação para o campo de extermínio de Buchenwald, faz o seguinte relato: “Recitando poemas para mim mesmo, eu conseguia esquecer a tristeza e a dor”.

É em outro contexto que se percebe com maior precisão que a leitura, em tais contextos, pode ser não apenas resistência, mas também uma maneira de sobreviver ao horror. Entre 1940 e 1941, um grupo de oficiais poloneses detidos num campo de trabalhos forçados, no período stalinista, encontra uma maneira incomum, porém altamente eficaz, de resistir à aniquilação moral e intelectual. Esses oficiais sobrevivem ao cansaço dos longos e extenuantes turnos de trabalho ao ar livre recordando, comentando e sobretudo citando de memória longos trechos de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, obra que a União Soviética havia colocado em sua lista de livros proibidos. Um pouco do significado que tais leituras exerceram para essas pessoas nesses períodos únicos da história nos é fornecido pelo filósofo e escritor Albert Camus, Nobel de Literatura de 1957, em seu discurso à Academia Sueca: segundo Camus, esse leitores “tiveram que forjar para si uma arte de viver em tempos de catástrofe para nascer uma segunda vez e em seguida lutar, com o rosto descoberto, contra o instinto de morte que está ativo em nossa história”.

“Se a história lida é bela, é porque o interior de si mesmo é belo”

Se para alguns a leitura de obras literárias, nesses momentos críticos, possa parecer em primeira instância evasão, fuga, é preciso lembrar que é através de uma pausa na dura realidade cotidiana que se consegue obter o alento necessário para que se consiga reunir forças para seguir adiante. Com efeito, o filósofo e escritor Alain de Botton observa que “é no diálogo com a dor que muitas coisas belas adquirem o seu valor”. Em outras palavras, a familiaridade com o sofrimento é uma espécie de insólito pré-requisito, embora não necessário, para a apreciação da beleza literária. Nessa mesma linha de raciocínio, Karine Brutin afirma que “o encontro com o livro permite, nas situações de catástrofe psíquica, uma reconciliação com o mundo interior e (é capaz de) revelá-lo a partir de representações culturais e artísticas”. Por sua vez, a antropóloga francesa Michèle Petit parece estar de acordo com esses autores, pois, em suas palavras, “se a história lida ou a imagem é bela, (é porque) talvez o interior de si mesmo é que seja belo”. Trazer à luz toda essa beleza depende unicamente de ter contato com tais textos. Em outras palavras, trata-se de uma maneira em todos os aspectos enriquecedora de domesticar o sofrimento. É possível concluir que, nos exemplos mencionados, os livros representaram moradias provisórias, talvez mesmo uma maneira de recriar em parte a casa perdida.

Por mais que seja verdade que é difícil especificar com exatidão o que se conquista de concreto e em curto prazo com a leitura de obras literárias, é ainda mais inegável o efeito benéfico de tal prática já a partir das primeiras páginas, a partir do momento em que uma voz única se dirige exclusivamente a nós, de um modo como nenhuma outra o pode fazer. Observemos a definição de Michèle Petit: “Não lemos apenas para dominar a informação, e a linguagem não pode se reduzir a um instrumento, a uma ferramenta de comunicação. Não lemos apenas para chamar a atenção nas reuniões ou para imitar os burgueses (...). Muitas mulheres e alguns homens, em número um pouco menor, leem pelo prazer de descobrir e inventar um sentido para suas vidas, inclusive nos meios populares. Para sair do tempo, do espaço cotidiano e entrar em um mundo mais amplo; para se abrir ao desconhecido, se transportar para universos estrangeiros, deslizar na experiência do outro ou outra, se aproximar do outro que vive em nós mesmos, domesticá-lo, temê-lo menos. Para conhecer as soluções que outros deram para o problema de estar de passagem pela terra. Para habitar o mundo poeticamente e não apenas estar adaptado ou inadaptado a um universo produtivista”. Para finalizar, é possível resumir, em outras palavras, estas frases da antropóloga através de uma figura de linguagem muito usada em nossos tempos, devidamente adaptada à questão presente: diante de situações de crise, diante do imponderável ou mesmo diante do dia a dia aparentemente inofensivo, mas que corrói irremediavelmente a todos com o passar incessante dos dias, a leitura se revela, possivelmente como nenhuma outra atividade em termos de eficácia, uma poderosa luz no fim da escuridão, uma poderosa centelha cuidadosamente disposta em volumes nas prateleiras de alguma estante, não importando gênero literário. Mesmo porque o capítulo sobre os gêneros, de tempos em tempos, precisa ser reescrito. Em razão disso, o melhor gênero, em âmbito mais universal, continua sendo as palavras cuidadosamente alinhadas, que, trazidas à luz pelo leitor, libertarão tantos significados quantos são os seus leitores.