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Colunista 08/05/2017 07:34
Por: Arthur Lersch Mallmann

O encanto do livro e o poder da escrita

É época de Feira do Livro em Santa Maria. Há alguns anos atrás, quando ainda morava em outro endereço, o meu caminho de casa passava sempre pela praça que tradicionalmente sedia a Feira. Todo o ano, na quinzena que antecede o Dias das Mães, a praça era tomada de uma aura inexplicável que fazia com que eu me perdesse completamente naquele lugar: sempre, todo dia. Hoje, a frequência com que passo pela praça povoada de pessoas e livros diminuiu bastante, mas o encanto que ela surte em mim segue o mesmo. No entanto, não era a Feira em si a responsável por esse efeito. Fosse uma feira qualquer (vá lá, uma feira de tomates) não haveria nem sequer metade da magia. A verdade é que um conjunto de livros é capaz de exercer um magnetismo único no nosso imaginário. Eu, por exemplo, jamais esquecerei da primeira vez que entrei em um tradicional sebo aqui de Santa Maria. A entrada era um corredor estreito permeado de livros; após o corredor apertado, descobre-se um cômodo amplo para cima, embora nem tanto para os lados: havia poltronas com velhinhos tocando violão, um balcão com café, e acima deles seguiam-se mais carreiras de livros. Meus olhos brilhavam: aquilo era um universo paralelo para mim, algo como Oz ou Nárnia. Talvez eu seja suspeito para falar (tive apego por livros desde que me entendo por gente), mas acho que quem, por acaso, ainda não sentiu essa energia singular que os livros emanam possui muito bem o potencial de despertá-la. Como eu disse, nada contra tomates, gosto muito deles, mas o livro, e mais profundamente a escrita, são as nossas maiores invenções dos últimos 5.200 anos – que tal essa para o Iphone 7? Ainda assim, o que está por trás do encanto dos livros não é algo que se percebe tão de cara.

Existe aquele clichê já um pouco gasto que afirma que a leitura nos faz viajar. Como todos os clichês, ele até faz sentido. “Viajar”, no entanto, é uma palavra que não faz justiça ao ato de ler – pelo menos no meu ponto de vista. O famoso cientista americano Carl Sagan descreve perfeitamente o fator que o surpreende no livro. À primeira vista, é um “objeto plano, feito a partir de uma árvore, com partes flexíveis, nas quais são impressos traços engraçados e escuros”. No entanto, uma vez sabendo decodificar esses traços, basta um olhar prolongado e “você está na mente de uma outra pessoa”. Esse “viajar”, portanto, não tem o sentido de “viajar para Porto Alegre”, ou coisa que o valha, mas algo como romper a barreira do espaço, e o mais importante, romper a barreira do tempo. Nesse sentido, a escrita é notável por transpor a própria morte, visto que boa parte das pessoas que lemos hoje já não se encontram mais vivas – algumas delas há milhares de anos. “Através desses milênios, o autor ou a autora está falando clara e silenciosamente dentro da sua cabeça, diretamente para você – o livro rompe as correntes do tempo”.

Para que isso aconteça, no entanto, há um desafio pelo qual todo o objeto escrito passa: o teste do tempo. Civilizações vêm e vão, algumas valorizam a cultura escrita e criam condições para que a mesma persevere; outras a veem como perniciosa e instituem catálogos de obras proibidas ou merecedoras da fogueira. Obras específicas podem desaparecer por questões materiais, isto é, se deteriorar, serem queimadas, etc.; ou elas podem ser simplesmente esquecidas. A cada vez que uma pessoa pega um livro e o lê, o mesmo ganha uma sobrevida. O mesmo ocorre via reimpressões (e até o surgimento de outras plataformas de leitura). Novas edições e novos leitores – esse é o respirar do livro. Nesse sentido, é interessante notar que a valorização do livro se dá no sentindo inverso da lógica de mercado. Ao passo que no mercado a novidade é o que há de mais valioso, os clássicos, vencedores do teste do tempo, são os mais prestigiados. Claro, livros recém-lançados podem muito bem ter uma qualidade inquestionável; não é esse o meu ponto. O que quero destacar é que se alguns sujeitos são lidos e publicados por séculos ou milênios, é porque definitivamente há algo de relevante contido neles.

A consciência desses fatos torna o ato de ler uma experiência quase mística, e assemelha as bibliotecas a algum tipo de templo. Nicolau Maquiavel, o célebre filósofo italiano, confessou uma vez que a primeira coisa que fazia ao chegar em casa era se despir das roupas que usara ao longo do dia para colocar vestimentas “dignas de corte”. Isso porque a noite seria dedicada à leitura, ou seja, ele iria entrar no “recinto dos antigos e ser recebido por eles”. A biblioteca da Trinity College, em Dublin, na Irlanda, umas das mais belas do mundo, possui bustos de alguns grandes autores contidos no acervo próximo a seus pilares. Seus semblantes parecem evocar justamente essa presença, esse rito representado pela leitura. Parece funcionar quase como um aviso: o que você está pegando não é um mero objeto feito a partir de árvores com partes flexíveis e traços escuros; você está entrando na nossa mente, no nosso recinto. E é essa transfiguração que traz o encanto dos livros: deixamos de contemplar objetos, e vemos vivências de mulheres e homens, de histórias semelhantes ou mais peculiares, provavelmente sofridas, e certamente com alguma experiência de vida, alguma sabedoria para compartilhar. A imensidão de livros (seja em bibliotecas, livrarias, sebos ou feiras) servem, no mínimo, para nos lembrar o quanto da vida nós ainda ignoramos.