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Colunista 28/08/2017 17:04
Por: Arthur Lersch Mallmann

De onde vem a esperança

A nossa condição está dada: estamos a cada dia mais familiarizados com a bolha surreal que é a política brasileira. Vivemos um processo de normalização do inaceitável no qual nada parece nos afetar. É como uma depressão coletiva. Se algo voltar a nos inspirar no âmbito político, aí sim, talvez, esbocemos uma reação. Nesses casos, algum tipo de faísca eventualmente nos colocaria em movimento. Agora, nas condições atuais em que as maiores ignomínias ocorrem a todo instante, às claras, para todo mundo ver, não ameaçamos uma reação maior do que comentar com alguém no elevador sobre a situação dramática de Brasília. É como se tivéssemos nos acostumado com a água do esgoto e, frente a nosso próprio sentimento de impotência e desilusão, nos consolássemos por pouquíssima coisa: “pelo menos a agua está morninha”.

O meu texto de estreia nesse espaço versava a respeito da atmosfera de desesperança reinante, a qual, pensava eu, permaneceria presente no país por mais um tempo. Jamais eu poderia imaginar que essa desesperança se consolidasse numa conjuntura de divórcio completo entre população e governo. Afinal, que setor da sociedade, que não a classe política, apoiaria uma “reforma” cujo fundamento é um fundo de financiamento público bilionário e um sistema eleitoral (conhecido como “distritão”) que favorece ainda mais as velhas figuras carimbadas? Isso hoje é votação urgente em Brasília. O congresso, e consequentemente suas pautas, falham miseravelmente em representar seus eleitores, com exceção do velho baronato brasileiro. Não é por acaso que as pesquisas apontam uma paulatina queda da confiança dos brasileiros na democracia, o que gera um compreensível, embora muito temeroso, desejo de soluções simplórias para problemas complexos. Ainda assim, a despeito desse cenário desolador, há uma clara insistência em impor um estado de normalidade das coisas.

Não falo meramente dos escândalos de corrupção, mas da estrutura política em si e como um todo. Autoridades ligadas ao governo, alguns magistrados e setores da mídia invocam com frequência a naturalização de tudo o que vemos, como se tudo fizesse parte do protocolo. Em editorial recente, escrito no início do mês de agosto desse ano, o grupo Globo atesta “o saudável funcionamento” das instituições. A base do governo Temer também repete, tal qual um mantra, a mesma frase sempre que há a oportunidade. Acerca da votação que impediu o avanço das investigações sobre sua própria pessoa, o presidente Michel Temer comenta que o resultado foi uma “vitória da democracia”. Em completo contraste com o discurso da normalidade política, repercutindo a mesma votação, o jornal inglês The Guardian descreve como a “falência do sistema político” brasileiro.

Me pergunto qual seria o critério desses grupos para ousar falar de “funcionamento saudável” das instituições. É sabido que o discurso político é geralmente proferido com o intuito de criar certas aparências, mas o que tem se ouvido ultimamente é um insulto, sem qualquer despudor, à nossa inteligência. Ora, a avaliação fundamental que deve ser feita é em relação a sua finalidade, que é a razão de ser de qualquer arranjo político; isto é, nos perguntarmos para quem e para que serve. Por exemplo, de modo geral, e em tese, o congresso serve para representar a vontade popular por meio da atuação legislativa; do mesmo modo, os órgãos judiciários precisam ser o fiel da balança, um ponto de equilíbrio que se coloque o mais longe possível das disputas político-partidárias e mais próximas do teor escrito da lei. Se isso não está acontecendo, por mais que os assuntos do poder continuem transcorrendo com uma certa estabilidade, há um grave problema aí. E é nesse ponto que mora a nossa tragédia brasileira: todos os nossos problemas fundamentais só podem ser solucionados pela via da política, jamais fora dela, e nos sentimos completamente alheios a essa esfera, como se não fosse da nossa alçada participar e decidir.

Com a incapacidade de nossas instituições construírem uma reforma de dentro, é preciso, em algum momento e de alguma forma, fazer renascer algum tipo de mobilização por parte da população. Não uma mobilização que se restrinja a um mero projeto de poder, mas um projeto de reestruturação do pacto político no qual seja possível encontrar um chão comum, principalmente no combate a privilégios históricos. Já passamos da hora de discutirmos uma reforma fiscal que tire o ônus desmedido do setor produtivo e das classes mais baixas; uma reforma previdenciária que garanta uma aposentadoria digna, mas que corte as vergonhosas pensões estratosféricas; e, por fim, um debate amplo e contínuo sobre uma reforma política. Nada disso é, em si, utópico, mas depende inteiramente de mobilização popular. Por sua vez, a mobilização requer que tenhamos esperança de que nossas dificuldades sejam de fato transponíveis. E esperança está em falta por essas bandas. E de onde podemos tirar a esperança? Onde ela se produz? É matéria-prima ou produto refinado? Dizem que triste é um povo que precisa de heróis; mas pena mesmo devemos sentir de um povo que já não sabe de onde vem a esperança.