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Geral 24/03/2017 10:37
Por: Luciano Mallmann

Num tempo de transformações, surge um veículo de comunicação

Folha nasceu no fim de uma ditadura, em período marcado por esperanças

Era um tempo de transformações. No Brasil, a população ia às ruas clamar, em comícios que ficaram conhecidos como as maiores manifestações públicas do povo brasileiro, pelo direito de eleger o presidente da República em eleições diretas. Naquela época, no que se referia à política, as conquistas tinham de ser aos poucos. Mesmo assim, nos livros de História, os anos de 1985 e 1986 serão sempre lembrados como um período de intensas reivindicações populares e, talvez acima de tudo, de lutas, além da esperança. O que não entrou para os livros, no entanto, foi o entusiasmo que predominou naqueles anos - uma espécie de sentimento que, movido pela ânsia de justiça, acrescido de uma boa dose de fé em dias melhores, perdurou para muito além daqueles tempos. Pois uma ditadura havia chegado ao fim. Obtida pelas vozes dos cidadãos nas ruas, uma das conquistas do povo foi a tão falada liberdade de imprensa. Quando se busca rememorar o passado e a história da Folha de Candelária, pouca coisa pode haver de tão significativo quanto a liberdade de expressão.

No mês de fevereiro de 1986, um panfleto começou a circular pelas ruas da cidade, com os seguintes dizeres: "Candelária vai virar notícia". Os cidadãos ficaram no mínimo curiosos, e se dividiram entre os céticos - pois a cidade já havia testemunhado algumas tentativas de jornal - e os confiantes. No que depende, porém, das lembranças da noite de lançamento, em 18 de março de 1986, na Câmara de Vereadores, pode-se concluir que os confiantes predominaram, ao menos em número, pois a comunidade candelariense compareceu em massa. A capa da primeira edição traduzia um pouco do sentimento da época: "Depois da seca, a esperança na safrinha". E assim seria nos anos seguintes: misturar fatos e os sentimentos da população a que viera dar voz foi um dos pontos fortes da Folha de Candelária.

A julgar pelos dizeres do panfleto, a Folha conquistou credibilidade já no momento da primeira edição, pois a comunidade se viu refletida já naqueles dizeres de abertura - era verdadeira a afirmação do panfleto. E as edições eram o resultado do trabalho do jornalista Marco Mallmann, que havia chegado a Candelária no início daquele ano. Com ele, vieram seu pai, Roque Mallmann, a mãe, Rosa Nilse, e o irmão Luciano. Antes do final daquele ano de 1986, viria juntar-se à família o irmão Jorge Mallmann.

Se visto pelos olhos de hoje, em que a garantia de velocidade é característica básica de qualquer trabalho, fazer jornal naquela época poderia parecer algo pré-histórico, guardadas as devidas proporções. Assim como todo trabalho artesanal, cada página do jornal passava por muitas mãos, em um processo que às vezes durava dias e que envolvia máquinas que hoje são literalmente peças de museu. Entre elas, estava a tituleira, para escrever os títulos a serem colados no topo da página. A parte mais trabalhosa era a confecção dos anúncios: em retângulos de papel de montagem, decalcava-se letraset - uma espécie de letra transferível -, com seus diferentes tipos, uma letra de cada vez, formando palavras a que se somavam ilustrações e os nomes das lojas.

As matérias eram escritas nas antigas máquinas datilográficas. Após, os textos passavam pelo processo de composição, que consistia em transcrever os textos datilografados numa máquina eletrônica, já no formato de tiras, que, depois, seriam recortadas e coladas nas folhas de montagem, uma espécie de papel usado exclusivamente nesse processo de fazer cada página do jornal. Já as fotografias eram feitas com máquinas que ainda dependiam do uso de filmes, que precisavam ser revelados em laboratório e copiados em papel fotográfico. Se por um lado itens como título, texto e foto dependiam cada um de máquinas para a sua confecção e, quando prontos, colados à página de montagem, os anúncios dependiam exclusivamente do trabalho manual, e também vinham completar os espaços nas páginas prontas. Para todo esse processo, usava-se uma mesa de montagem, um móvel com tampo de vidro sob o qual duas lâmpadas fluorescentes facilitavam o trabalho. Como as folhas de montagem possuíam linhas no seu verso, a transparência ocasionada pela luz possibilitava que a colagem ficasse mais ou menos reta. Depois do fechamento da edição, que ocorria nas quartas ao longo da madrugada, as páginas prontas do jornal eram enviadas, por ônibus, no início da manhã de quinta, para a cidade onde seriam impressas. O produto final, ou seja, o jornal impresso, em pacotes, chegava no final da tarde e circulava na sexta-feira.

Através das páginas do jornal, os candelarienses encontram um porta-voz

Para a família que viera à terra das candeias fundar um jornal, era necessário que Candelária não se restringisse a ser apenas um município incrustado no vale em que corria um rio. Na verdade, logo nos primeiros dias, a cidade se traduziu em vozes, fisionomias, nomes, histórias, expectativas, amizades. E o principal: aceitação. Dentre todos os lugares do mundo, era o lugar perfeito para estabelecer vínculos e criar raízes, através das páginas semanais da recém-criada Folha de Candelária. E a família descobriu o quanto havia de riqueza no passado histórico do município, de belezas naturais e de um passado fossilizado que remontava a muitos milhões de anos. Assim, além das notícias do dia a dia, a Folha passou a resgatar todo esse potencial para mostrá-lo a habitantes que muitas vezes desconheciam seu próprio patrimônio. Mais uma vez, a frase do panfleto foi lembrada. Mas a maior riqueza de Candelária era mesmo sua gente, e o valor de uma população ia muito além das páginas de um semanário. Desse modo, quem se destacava pela beleza ganhou as passarelas do concurso Musa do Sol. Já os artistas puderam mostrar seu talento no Gente Nossa ou ter seu valor reconhecido na Noite dos Destaques.

Os primeiros anos de circulação da Folha transcorreram sem grandes avanços tecnológicos. Olhando em retrospecto, tais progressos não parecem ter vindo de forma lenta, mas em uma sequência rápida e que exigia uma grande capacidade de assimilação. Foi na década de 1990, por exemplo, que surgiram os primeiros computadores. Naqueles tempos eles eram um artigo caro, havendo apenas um na redação, usado para fazer os anúncios. Com os anos, porém, as antigas máquinas de escrever acabaram ficando obsoletas, tanto as eletrônicas quanto as de datilografia, e as matérias passaram a ser escritas diretamente nos computadores, nos recém-criados processadores de texto. A partir de então, até o final da década, com o surgimento das primeiras câmeras fotográficas digitais, que dispensavam os filmes e a revelação, começou um processo de evolução que, ainda hoje, parece não ter fim.

É preciso lembrar que a história da Folha de Candelária se confunde com a trajetória de uma família. E, às vezes, se torna impossível discernir entre uma e outra. Em janeiro de 1990, a Folha perdeu o seu diretor, Roque Mallmann, que, em grande medida, foi também seu idealizador. A partir de então, passou a ocupar o lugar de diretora do jornal a viúva, Rosa Nilse Mallmann, função que ela desempenha até hoje.

Existe um dizer milenar de origem filosófica segundo o qual a única coisa que não muda é a impermanência, estando todo o resto sujeito à ação do tempo. E já se viu que ele se aplica com especial tenacidade aos seres humanos. Foi assim com Roque Mallmann. Pelo fato de ser jovem, nada impediria que a figura e a vida de Marco Antônio Mallmann fossem igualmente transitórias. Assim, no final de tarde de um dia de fechamento de edição que tinha tudo para ser como qualquer outro, em questão de segundos, Marco partiu desse mundo. Era o dia 14 de dezembro de 1994. E, por muito tempo, embora o trabalho precisasse prosseguir, tudo se fez silêncio. Ao fim desse período, surgiu uma interrogação: quanto tempo se leva para avaliar ou mesmo medir o legado de um homem? Eis uma pergunta para ocupar a mente um pouco por dia. Outra interrogação que se propõe é o que, neste mundo, pode ser previsto. No último dia 18 de março, a Folha completou 31 anos, ultrapassando em idade seu próprio criador. E quem poderia imaginar que o próprio jornal se tornaria manchete?

Mesmo assim, a Folha já tinha provado ter vindo para ficar. Se por um lado a tecnologia facilitava sempre mais o modo de fazer um jornal, havia algo que, ao longo daqueles anos e mesmo hoje, permanece inalterável: o respeito ao fato, à fonte, ao valor de cada notícia. Nada mudou no contexto que se forma em torno de uma pessoa que tem algo a transmitir, no ato de colher seu testemunho até que a essência de suas palavras se torne uma matéria. Não mudou, nem irá mudar, porque a notícia nasce eternamente dessas fontes que são os relatos de pessoas das comunidades em que um veículo de comunicação está inserido. É com elas que o jornalismo nasce, e é a existência delas e de suas histórias que, a cada sexta-feira, tornam possível o lançamento de mais uma Folha.

De uns anos para cá, em razão do avanço dos computadores, muito se especulou sobre o fim dos livros. Da mesma maneira, com os grandes jornais investindo na criação de sites de notícias, muitos recearam o fim da imprensa escrita. A respeito dos livros de papel, o que se verificou foi um aumento considerável no lançamento de novos títulos, inclusive em edições de bolso. Quanto aos jornais, é fato que alguns periódicos tiveram a sua circulação reduzida, mas nada há que comprove que suas edições de papel um dia chegarão ao fim. Da mesma forma, acreditou-se que as notícias poderiam ser veiculadas por redes sociais, tornando os jornais obsoletos. Também nesse aspecto, a realidade parece ter desmentido as previsões. É verdade que existe hoje a possibilidade de optar pela assinatura digital - um grande avanço. Todavia, existem assinantes, e não são poucos, que fazem da leitura um ritual. E, como em todos os rituais, cada elemento exerce uma função. Para esse tipo de leitor, o jornal de papel será sempre necessário, e não se trata de algo a se extinguir com as gerações mais velhas. As crianças estão aí para falar do prazer que sentem ao folhear seus livrinhos e revistas, bem como do suspense representado no virar de cada página. A apreensão do mundo passa antes de mais nada por uma relação táctil com os veículos de ensino e de informação, no caso, o livro e o jornal. Acreditemos nesse futuro, pois são nossas crianças. Temos a obrigação de deixá-los fazer suas próprias escolhas. E, entre tantas possibilidades, elas sempre parecem saber o que é melhor.