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Colunista 19/08/2017 17:34
Por: Marcos Rolim

Evasão escolar e violência extrema

Todos os que conhecem um pouco de criminologia sabem que, mesmo entre aqueles indivíduos que se dedicam a uma carreira criminal, apenas uma pequena parcela é capaz de praticar atos de violência extrema, compreendida como tal a violência que surge, aparentemente, fora de uma moldura racional, diante de provocação mínima ou mesmo na ausência de qualquer provocação. Nesse sentido, a contribuição do criminólogo norte-americano Lonnie Athens é seminal. Foi ele quem, ao início dos anos 90, se dispôs a estudar o que chamou de “criminosos violentos e perigosos”, chamando a atenção para o que, presumidamente, havia de diferente na formação daqueles sujeitos. Athens entrevistou em profundidade condenados que aguardavam em presídios americanos a execução da pena capital, encontrando um padrão de graves violências sofridas por muitos deles na infância e na adolescência. Com essa base empírica, formulou de forma persuasiva sua “Teoria da Violentização”, ainda hoje pouco conhecida no Brasil.

Em 2013, realizei pesquisa empírica sobre o tema, o que estruturou minha tese de doutoramento em Sociologia na UFRGS, recentemente editada com o título “A Formação de Jovens Violentos, estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris, 2016, 385p). A investigação partiu de um grupo de 17 jovens privados de liberdade na FASE (antiga Febem do RS), selecionados de acordo com a gravidade dos atos violentos a eles atribuídos, incluindo adolescentes com múltiplos homicídios. Entrevistei esses jovens com a abordagem de história de vida (life story approach) e, ao final de cada entrevista, solicitei que me indicassem um colega de infância não envolvido com o crime. Com as indicações, localizei outros 11 jovens, de mesma idade e sexo, igualmente pobres que, não obstante as dificuldades que enfrentaram, haviam se tornado trabalhadores e seguiam estudando. Então, repeti as entrevistas em profundidade com eles.

Naquele momento, imaginava que a comparação entre esses dois grupos poderia me sugerir um caminho para compreender as causas da violência extrema. O estudo comparativo, entretanto, mostrou realidades antípodas na maioria dos temas, mas também semelhanças importantes quanto aos fatores de risco a que todos foram expostos, o que impedia a identificação de dinâmicas causais inequívocas. Para encontrar uma resposta ao que procurava, seria preciso ultrapassar a limitação comum aos estudos qualitativos e formular um modelo causal, em abordagem quantitativa. O modelo delineado tratou de medir as experiências potencialmente associadas à disposição de praticar atos de extrema violência a partir dos campos etiológicos fundamentais: a família, a escola e a vida comunitária. Em um recorte teórico nas variáveis independentes, elenquei ainda um campo específico de violência sofrida na primeira infância, a “brutalização” referida por Athens.

Adaptei o questionário empregado por Hirschi (2001) em seu Estudo sobre a juventude de Richmond (High School Questionnaire, Richmond Youth Study), e lidei com a “Escala de Socialização Violenta” (Violent Socialization Scale), desenvolvida por Rhodes (2001), que mede a teoria de Athens. Além dos dois grupos iniciais, apliquei os questionários a detentos do Presídio Central de Porto Alegre, condenados por crimes com violência (homicídio) e sem violência (receptação), e a alunos de uma escola da periferia da mesma cidade. O procedimento me ofereceu as respostas de 111 jovens do sexo masculino, em uma mesma faixa etária e condição social, viabilizando o processamento estatístico de uma expressiva quantidade de informações.

Após análise fatorial e cálculos de regressão, encontramos que a disposição violenta dos jovens está informada, basicamente, pelo “treinamento violento”, confirmando em parte a Teoria da Violentização. Quando analisamos a influência causal (β), esse processo responde por 54,2% da disposição violenta da amostra. Ou seja, sem essa experiência, o problema seria reduzido a menos da metade.

Muito bem, mas em que consiste o “treinamento violento” no Brasil? Tratamos de uma dinâmica perversa onde alguém mais velho, via de regra apenas alguns anos mais velho, introduz adolescentes e pré-adolescentes no mundo do crime, ensinando-lhes desde o manuseio das armas de fogo até os valores do grupo criminal. Assim, meninos de nossas periferias que saíram precocemente da escola constituem o “exército de reserva” dos grupos armados que disputam o controle do tráfico. São os jovens que se evadem da escola pública aqueles que estão mais amplamente expostos aos riscos da socialização em comunidades menores e ultraviolentas. Em contextos dessa natureza, permanecer mais tempo na escola faz uma diferença enorme e costuma ser a única chance para a ampla maioria.

O que a pesquisa sugere é que o fenômeno da violência extrema, ao contrário do que se costuma crer, parece ter pouca relação com as famílias dos jovens e mesmo com experiências disruptivas comuns à adolescência. Trata-se de um tipo de violência coletiva que envolve uma identidade grupal para autores e vítimas, nos termos de McDoom (2011). Nas periferias, é comum que uma parte dos jovens do sexo masculino conviva com “instrutores” violentos, um tipo de associação que, obviamente, é favorecida pela negligência, pela ausência paterna e pela falta de estruturas de cuidado, como escolas infantis e clubes juvenis. O ponto de virada para o que Juan Mario Fandiño chamou de “transição criminológica”, a partir das oportunidades abertas pelo tráfico de drogas, se afirma como realidade para muitos jovens pobres, entretanto, na exata medida em que a escola pública falha em lhes oferecer perspectiva diversa. Também por conta disso, o fenômeno da evasão escolar deveria ser objeto de especial preocupação no Brasil, demandando políticas públicas específicas e, ao que tudo indica, profundas mudanças na escola.