Logo Folha de Candelária
Colunista 13/09/2019 14:25
Por: Ângelo Savi

As virtudes da corrupção

No último fim de semana li (na verdade devorei) “Nossa Cultura... Ou o Que Restou Dela”, de Theodore Dalrymple. A obra é composta de vários textos sobre diversos temas. O autor é um médico e pensador britânico. Prestou assistência humanitária em países pobres da Ásia, África e América Central, até em meio a guerras e desastres naturais. Sempre trabalhou em penitenciárias e hospitais de regiões pobres da Grã-Bretanha. Portanto trata-se de intelectual sui generis, pois, tendo exercido sua profissão entre os carentes e despossuídos, destoa da grande maioria dos pensadores, que se limitam a teorizar sem enfrentar na prática os problemas reais da humanidade. O assunto do livro, como diz o título, é a cultura, mas no sentido mais amplo possível, abarcando temas como costumes, leis, moral, hábitos e, claro, também arte.

O texto que destaco é intitulado “As Virtudes da Corrupção”, em que a Grã-Bretanha é comparada com a Itália. Há poucas décadas a Grã-Bretanha era superior em tudo, mas hoje a situação se inverteu. É um estudo sério, mas em diversas passagens se torna hilariante pela descrição dos absurdos da realidade dos países.

A tese do texto é de que na Europa há um agigantamento do estado que crescentemente intervém tanto na vida dos indivíduos quanto na organização da sociedade, criando dependência que redunda na infantilização geral, anula a criatividade, a coragem e o caráter das pessoas. A diferença está no fato de que na Itália, ao contrário da Inglaterra, a política e a burocracia são histórica e profundamente corruptas. E, assim, os italianos desenvolveram desconfiança e descrença em relação ao estado, não contando com ele para nada. Apoiam-se nas relações familiares e no círculo de amizades para resolver seus problemas, e quando têm que enfrentar embaraços burocráticos, não perdem tempo e vão direto ao ponto, subornando ou se valendo de influência de algum padrinho para abrir caminhos.

Na Inglaterra, ao contrário, há uma tradição de honestidade no serviço público e de crença nele por parte do povo, só que esta situação não resulta em coisa boa, porque as intervenções e regulações redundam em paralisia. Precisamente porque o aparato estatal cumpre a risca tudo que é predeterminado pelas infindáveis regras da administração pública é que os britânicos se tornaram dependentes. O resultado é que o povo britânico, outrora orgulhoso e independente, tornou-se incapaz de iniciativa, sempre esperando pelo governo, que nunca, ou quase nunca, entrega na prática aquilo que promete.

Já na Itália, pela descrença no estado, desenvolveu-se uma pujante economia paralela que, segundo os próprios italianos, é maior do que a oficial. Individualmente, os italianos são mais felizes, independentes, envolvidos com os prazeres da vida, de modo que lá se mantém uma genuína e criativa produção tanto de bens materiais quanto culturais, que fizeram com que a Itália superasse a Grã-Bretanha economicamente e também em qualidade de vida.

Não há como não traçar um paralelo com o Brasil. Aqui, nós temos a mesma descrença e desconfiança que os Italianos têm em relação ao estado. Estão aí para provar os resultados de pesquisas de opinião que indicam uma péssima avaliação das instituições. No entanto, somos ingênuos e paradoxais, porque ao mesmo tempo em que julgamos corretamente que o estado é incompetente e inepto, aguardamos que ele resolva tudo, pedindo mais intervenção. Vivemos esperando que o governo nos dê saúde, educação, segurança, desenvolvimento. É como acreditar que o tratamento que sempre foi ineficaz vá curar a doença da próxima vez que for aplicado. A combinação de incapacidade do estado com esperança do povo não funciona. O ideal seria que houvesse honestidade e competência, mas na falta dos dois, talvez a solução seja que façamos como os italianos, passando a cuidar de nós mesmos e não dando mais bola para o estado.