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Colunista 02/10/2017 16:24
Por: Arthur Lersch Mallmann

Informação e barbárie

Há algo de muito errado no modo como estamos lidando com a informação. Vocês já devem ter ouvido falar do debate, baseado e inflamado pelas redes sociais, e dos novos conceitos que vêm sendo utilizados para tratar do tema: fake news¸ pós-verdade, etc. Ao contrário do que intuitivamente possamos pensar, o processo de hiperdescentralização da mídia, isto é, a consolidação da internet como fonte de notícias, tornou a informação muito mais apta a ser torcida e distorcida. Grupos organizados ao longo de todo o espectro político criam nichos de público com base em manchetes que meramente confirmam as crenças estabelecidas de quem as consome. O formato, também, se encaixa perfeitamente na linguagem da internet: muitas imagens, poucas frases e a velha fórmula da denúncia sensacionalista de tipo “olha só o que fulano fez agora!” O viés político exacerbado nesse tipo de notícia, infelizmente, não criou uma representação justa de grupos sociais distintos na mídia; pelo contrário, gerou um descompromisso com o que há de mais fundamental na informação: a sua verdade.

Sei bem que a veracidade incontestável das narrativas, no sentido forte da expressão, não é algo assim tão simples de alcançar e que uma neutralidade absoluta é provavelmente impossível. No entanto, daí não decorre que algo próximo a isso, alcançado via complexificação do debate, não seja satisfatório, principalmente diante de uma situação na qual as notícias viram panfletos políticos de péssimo gosto. A intolerância com qualquer tipo de informação que contrarie a visão de mundo dos sujeitos tem sido a consequência da consolidação desse modelo. Ora, não seria a situação de nos depararmos com interpretações rigorosas de fatos que nos agreguem algo distinto justamente o aspecto mais valoroso do noticiário? Afinal, o exercício do pensamento crítico só é possível mediante provocações e dúvidas. O resultado: a sociedade brasileira se separa em bolhas, cada grupo abraçando suas opiniões com força descomunal, independentemente de qualquer justificação ou olhar crítico sobre elas. O esvaziamento do debate chegou a níveis tão brutais que as pessoas enchem o peito para teclar “mimimi” ou “chora mais”.

É curioso acompanhar como em todo esse processo conhecimento e opinião tragicamente se confundem. Cada pessoa acha uma coisa, o que, óbvio, é um direito, mas o diálogo termina onde deveria estar começando. Tapam-se os ouvidos; ou seja, vai-se embora com a mesma preconcepção completamente intacta – uma opinião travestida de certeza. A sabedoria dos antigos gregos já reconhecia a armadilha presente nas opiniões. Para eles, estas situavam-se a meio caminho entre o conhecimento e a ignorância. Se considerarmos que a esmagadora maioria de nós, meros mortais, ignora muito mais do que sabe, tendo em vista as incontáveis áreas de conhecimento existentes, é natural que preenchamos essas lacunas com opiniões. Nada de errado aqui. O problema não é a opinião em si, mas a revestirmos com ares de convicção e certeza e esquecendo que, no fundo, ignoramos.

As redes sociais, como o jornalista Antero Greco chamou atenção, coroaram o “eu acho” como o deus da pós-verdade. Sendo assim, o achismo ganha crédito de uma espécie de verdade particular, uma que não precisa de validação externa alguma. Importa muito destacar aqui o fato desse fenômeno alimentar um embate político que, em tese, transcenderia esquerda e direita: o da ignorância e do retrocesso contra a razão e a civilidade mínima.

Se faz necessário entender que a agenda que hoje avança é obscura e ignorante por ser contrária a tudo o que o humanismo, como conjunto de ideias, concebeu até hoje. Ela não dialoga e não se justifica – se impõe. Ela proíbe o aborto até em caso de estupro. Ela permite que fanáticos (sabe-se-lá-como) psicólogos “tratem” homossexuais. Ela concede ao Estado, supostamente laico, a possibilidade de lecionar ensino religioso como doutrina de uma religião específica em detrimento de qualquer outra. Ela se choca com obras de arte em um museu e convoca o boicote; para proteger a exposição do “olhar de crianças”, recorta, de um universo de mais de 260 obras, trechos de duas ou três, as descontextualiza e as espalha na internet, fazendo a polêmica chegar tão longe quanto as páginas do New York Times e, muito provavelmente, aos olhares de mais crianças do que qualquer exposição jamais sonharia em alcançar. Sabemos que a situação do país já é bastante difícil, seja nos prédios de Brasília ou na violência das nossas ruas. Mas é imprescindível que a construção de um país se dê na base de pilares racionais e inclusivos. Se esse não for o caso, a barbárie não vai ser o colapso de uma tentativa de país, mas parte indissociável das leis que o constituem.