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Colunista 06/04/2017 22:33
Por: Arthur Lersch Mallmann

O lado escuro da Modernidade

Lembro de ter lido há alguns meses atrás sobre uma pequena cidade na Suíça que disputava, havia já algumas gerações, um referendo para decidir sobre a instalação de iluminação pública no local. A maioria dos habitantes do lugarejo localizado ao pé da montanha vinha resistindo por décadas a fio contra a instalação de postes de luz, vencendo votação atrás de votação. A primeira reação ao se ler a história é de estranhamento, pois, de certa forma, somos condicionados a imaginar que não haveria muito o que deliberar nessa situação: possuindo recursos, instala-se a iluminação. Assim aumenta-se a visibilidade, a segurança e o conforto dos moradores. No entanto, o que escapa à nossa percepção é o que estava em jogo nesses referendos, isto é, o que se perderia com a chegada da luz: a noite virgem, quase intocada, patrimônio compartilhado desde tempos imemoriais. No final do ano passado, pela primeira vez os cidadãos “pró-luz” venceram o referendo e a cidade se despedirá do vívido céu noturno. Conto esse relato com o intuito de guiar a reflexão do presente texto, relacionando alguns aspectos da modernidade e seus respectivos impactos em nossas vidas.

Somos oficialmente uma espécie que possui um habitat urbano, ao menos desde 2014, quando se confirmou que mais da metade da população mundial atualmente se encontra morando em cidades. Nós humanos, além de sermos animais políticos e dotados de razão, somos seres históricos. Processos políticos, sociais e culturais nos tornaram, em um momento específico de nossa trajetória, obcecados pelo progresso. Tal traço obviamente nos trouxe grandes benefícios e gloriosas façanhas, como a própria ferramenta em que estou escrevendo e na qual o leitor ou a leitora me acompanha nesse momento, bem como avanços nos transportes, na medicina e inúmeros outros campos. Todo esse progresso, por sua vez, deixou coisas caras a nós perderem-se pelo caminho e criou suas próprias mazelas, as quais sentimos diariamente em nossas peles, embora não raro passem quase despercebidas por nós. (O exemplo um tanto romântico e bucólico da cidadezinha suíça ilustra um pouco o ponto em que quero chegar). Me parece inegável que uma vida urbana carrega consigo uma carga de urgência, uma rotina permeada de ruídos e estímulos que talvez nosso corpo não foi feito para vivenciar dia-sim-e-o-outro-também.

Provavelmente a maneira ideal de lidar com esses “efeitos colaterais” da modernidade seja a possibilidade de um refúgio bem situado onde possamos nos reconectar com nós mesmos e com os outros ao redor. Jamais esquecerei um recado de um reitor universitário que ouvi durante meu intercâmbio. Disse ele: “o que nós realmente precisamos é de um vasto gramado verde para sentar”. Para além disso, ele também sugeria aos estudantes que colocassem os pés descalços na terra, reunissem amigos ou simplesmente fechassem os olhos e respirassem. Ora, em diversas outras culturas a respiração não é uma mera troca gasosa que fazemos instintivamente para nos mantermos vivos, mas algo que requer atenção e uma técnica apropriada. Longe de ser um capricho, uma respiração bem-feita proporciona uma conexão profunda com nossas emoções e nosso estado mental. É incrível como, na rotina, somente lembramos da importância da respiração quando alguém se mostra demasiadamente nervoso e sugerimos, em tom de ordem, para essa pessoa respirar fundo. É razoável pensar que, devido a esses fatores, somos mais ansiosos do que nossos antepassados, menos capazes de nos concentrar, menos contemplativos e, por que não, talvez sejamos mais infelizes.

Falar de infelicidade na era do entretenimento pode parecer um paradoxo, ou talvez uma coisa não seja tão relacionada a outra como imaginamos. Hoje possuímos a nosso alcance toneladas de séries e filmes via streaming, videogames, redes sociais, etc. – tudo para nos divertirmos. Diversão. Di-ver-são: palavra interessante que possui um significado mais profundo com o qual nem sempre associamos, isto é, o de desviar a atenção, de distrair. É evidente que tirar o foco de nós mesmos é importante, mas quando isso se torna a regra nos alheamos completamente da nossa vida interior e nos desconectamos do que realmente somos. O que será que faz com que nos sintamos verdadeiramente vivos: encarar a imensidão e o mistério das profundezas de um céu noturno ou um site de vídeos engraçados? Será possível comparar os dois e considerá-los ambos caminhos para a felicidade? Qual dos dois vai mais fundo na experiência de ser, de verdade, um humano em toda a sua experiência de sofrimento e alegria? Yuval Noah Harari, israelense e autor do aclamado Sapiens: uma breve história da humanidade, em entrevista recente, ao ser perguntado sobre qual seria o maior equívoco que a humanidade tem sobre si mesma, responde que seria “a ilusão de que o controle sobre o mundo e a natureza nos tornaria mais felizes”. Ele ousa ainda mais ao afirmar que “não somos significativamente mais felizes do que na idade da pedra”. Quanto a sermos mais felizes não posso ter certeza, mas me pergunto se no futuro ainda lembraremos o que é sermos humanos nesse planeta.