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Colunista 09/10/2017 15:42
Por: Guilherme Brambatti Guzzo

Como me tornei um leitor

Estou lendo “Behave”, o mais recente livro do neurocientista e primatólogo Robert Sapolsky, uma obra extraordinária sobre comportamento humano (ainda não publicada no Brasil). Sapolsky discute o que nos faz agir da maneira como agimos nas mais variadas situações cotidianas. Além disso, o autor examina o que faz com que algumas pessoas reajam de uma maneira quando expostas a uma determinada circunstância, e outras tenham um comportamento distinto no mesmo contexto. Por que, por exemplo, algumas pessoas são agressivas quando confrontadas, e outras conseguem ter mais controle sobre o seu comportamento? A resposta para perguntas como essa é complicada, segundo o autor, e não é possível apelar para um único fator (como genética ou criação), se quisermos entender um pouco a respeito das coisas que fazemos.

A tese principal de Sapolsky é que os comportamentos humanos têm origem multifatorial, isto é, são desencadeados por uma série de elementos. Em uma palestra recente para o TED (que pode ser encontrada no site da organização ou no Youtube), Sapolsky parte de uma situação hipotética, na qual um sujeito está com uma arma na mão, em um local violento, e acaba atirando em uma pessoa que corria em sua direção carregando algo que parecia uma pistola, mas que era um celular. O que fez com que esta pessoa apertasse o gatilho? Sapolsky diz que esta questão comporta múltiplas respostas: a atividade de uma região do cérebro responsável por comportamentos associados ao medo, a quantidade de certos hormônios – como a testosterona – circulando pelo corpo, a constituição do cérebro do sujeito – moldada pelas experiências que teve na infância, adolescência, e também quando estava no útero de sua mãe, o histórico evolutivo do comportamento dentro da própria espécie. Esses e outros fatores desencadearam a reação de apertar o gatilho a partir da rápida aproximação de um estranho que parecia estar armado.

Ao ler “Behave” e pensando sobre as variadas causas de nossos comportamentos, comecei a refletir sobre a formação de um hábito que tenho desde criança e que me fez chegar até aqui, neste espaço da Folha de Candelária: a leitura. Até onde consigo me lembrar, sempre fui apaixonado por livros, especialmente obras de não-ficção. Em um Natal no início da década de 1990, quase tive um colapso de felicidade quando abri uma caixa de papelão, e nela havia uma coleção intitulada “Os Bichos”. Imagine, uma pilha de livros sobre um dos assuntos de que eu mais gostava! Tenho a coleção até hoje, e é incrível que ela ainda esteja em boas condições, apesar do seu uso incessante por quase uma década.

Considerando a enorme cadeia de influências que molda nossos comportamentos, a história de “Os Bichos” me faz considerar a primeira que me vem à mente quando penso na leitura: o papel fundamental de meus pais, que sempre fomentaram a minha curiosidade e me deram acesso a livros e a outros materiais relacionados àquilo de que eu gostava (animais, mapas e países, discos voadores, etc, na minha infância e adolescência). Cresci em uma casa cheia de livros, e a biblioteca ia aumentando à medida que minha curiosidade era estimulada. O resultado: com cerca de 10 anos de idade, eu já sabia um pouco sobre os hábitos alimentares, a distribuição geográfica e o comportamento social do guepardo. E também do condor, das hienas, dos gnus... (para minha surpresa, muitos adultos com quem eu conversava na época sequer conheciam esses animais).

Certamente eu não receberia tanto suporte dos meus pais se não demonstrasse interesse em certos assuntos. Se eu não fosse tão curioso e não tivesse tanta vontade de saber mais a respeito de animais ou de discos voadores, o número de livros sobre estes temas seria muito menor na minha casa. Assim, penso em um segundo fator, muito difícil de avaliar, mas que provavelmente tem um grande impacto na formação e manutenção de comportamentos: nossas inclinações naturais. Existem crianças que desde a tenra idade se apaixonam por algum assunto sem que exista um aparente estímulo externo para isso: elas simplesmente gostam de animais, ou de OVNIs, ou de qualquer outra coisa. Isso não quer dizer que exista um trecho em nosso DNA que nos condicione a gostar das coisas, mas o fato é que não somos tábulas rasas, como bem escreveu o psicólogo Steven Pinker. Temos algumas predisposições, e essas predisposições podem se tornar hábitos e moldar nossos comportamentos se receberem o devido estímulo para o seu fomento (livros para um menino curioso, por exemplo).

Mais adiante, na adolescência, tive bons incentivos de professores para a leitura, especialmente em aulas de português no Ensino Médio, com a professora Ivone, que organizava seminários nos quais cada estudante devia ler uma obra e apresentá-la aos colegas. O fato de não haver, na maioria das vezes, autores ou livros predeterminados para a leitura era um critério que me deixava bastante animado nesses seminários, já que eu podia ler aquilo que me interessava e ainda contar aos meus colegas sobre isso. Assim, eu entendia os seminários como mais uma oportunidade de continuar próximo dos livros.

Hoje, leio basicamente obras de não-ficção, por uma série de razões: preciso delas para a pesquisa de meu doutorado, para organizar e aprimorar minhas aulas e oferecer aos estudantes com quem trabalho boas sugestões de leituras, para ampliar meu repertório de ideias e de argumentos, e também porque gosto muito. Não consigo ficar um dia sem ler, e não consigo terminar a leitura de uma obra sem ter uma próxima engatilhada.

Certamente, eu não sou capaz de identificar todos os fatores que me ajudaram a gostar de livros (ou a fazer qualquer outra coisa), e também eu talvez não consiga dar o devido valor aos fatores que reconheço como importantes para me tornar um leitor. Humanos são animais complexos, como ressalta Sapolsky em “Behave”, e é por isso, creio, que não existem fórmulas mágicas para formar leitores, mesmo que algumas receitas pareçam melhores do que outras.