Logo Folha de Candelária
Geral 22/11/2019 14:49
Por: Luciano Mallmann

Palavra de abertura: o dom dos clássicos

Nos próximos dias, a Folha de Candelária passará a oferecer aos seus leitores, através de seu site, uma coluna intitulada “Leituras universais”. Além de incentivar o hábito da leitura, a proposta do espaço é trazer aos leitores algum conhecimento sobre livros que deveriam – e poderiam – ser lidos por qualquer pessoa, independente de sua idade ou escolaridade. São os chamados clássicos da literatura, obras que, entre outros aspectos, se caracterizam por permitir diversas interpretações ao mesmo tempo, concedendo ao leitor total autonomia nas suas conclusões.

Mas o que é um clássico? Inicialmente, pode-se dizer o seguinte: mais de 2.500 anos se passaram desde os dias em que a filosofia nasceu no cotidiano da famosa ágora, em Atenas, na Antiga Grécia. As ruínas dessa civilização podem ser admiradas ainda hoje, como testemunhas silenciosas de uma época que mudou os rumos da história do pensamento. Daqueles tempos, existe algo que chegou até os dias de hoje com toda a sua força, permanecendo tão atual como se tivesse relação direta com os nossos dias: a literatura. Pode-se perguntar: que estranho poder é esse que faz determinadas obras sobreviverem às civilizações que as geraram e mesmo a milênios, sem nada perder de seu alcance? Porém, não basta resistir à passagem dos séculos e, no caso, dos milênios, para que uma obra seja considerada um clássico. Para assim ser definido, o texto precisa ter a capacidade de provocar no leitor de hoje o mesmo impacto que causou quando foi escrito. E é com a impressão de estar lendo algo inédito e eternamente novo que leitores de todas as gerações se encantam, por exemplo, com obras como Édipo Rei e Antígona – que, apesar da passagem de milhares de anos, mantêm viva toda a sua capacidade de surpreender. Mais do que isso: um verdadeiro clássico não raras vezes deixa ao leitor um sentimento de total perplexidade.

Existem obras que parecem nascer para ocupar o satus de clássicos. Isso acontece quando um autor consegue deter por um momento o seu olhar sobre algo particular e torná-lo universal. Exemplo disso são as obras de Franz Kafka: entre as muitas histórias que cercam o escritor, conta-se que Kafka, ao descrever minuciosamente o funcionamento de uma máquina de tortura e execução, acabou, com rara maestria, definindo todos os aspectos inerentes à existência humana. Da mesma forma, ele fez algo semelhante em seu romance O Processo. Detendo-se nos passos de um homem que responde a um processo judicial, Kafka deu ao mundo um dos maiores testemunhos já escritos acerca dos meandros da humana condição – em todos os tempos. E hoje, passados mais de cem anos, O Processo está mais atual do que nunca.

Resistir à passagem do tempo e testemunhar de modo impassível a sucessão contínua das gerações de humanos: esse parece ser o destino das grandes obras. Às vezes, pelo grau de perfeição de alguns livros, tem-se a impressão que eles já nasceram prontos, como se tivessem sempre existido. Já se disse repetidas vezes que nunca se entra por duas vezes nas águas do mesmo rio. Do mesmo modo, se lemos a mesma obra em dois momentos distintos da vida, serão duas as interpretações que teremos. E, nesses dois momentos, seremos dois seres diferentes a se debruçarem sobre a mesma obra. E não faltam clássicos que nos marcam como ferro em brasa.

Outra verdade sobre toda grande obra é o fato de que a pessoa que iniciou a leitura nunca é a mesma que a finaliza. Se muitas vezes iniciou a leitura de modo desavisado, fatalmente o leitor retornará para a sua realidade transformado em algum aspecto. Os clássicos detêm esse poder pelo fato de, entre muitas outras, serem aquelas capazes de, aos poucos, revelar algum aspecto antes não percebido da realidade. E, por fim, são aquelas obras que concedem ao leitor o privilégio raro de fazê-lo enxergar a si mesmo. Para muito além dos limites de qualquer texto.