Por: Arthur Lersch Mallmann
10 anos da Kiss: Memória e Justiça
Na última sexta, 27, completaram-se dez anos do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, no qual 242 pessoas perderam a vida de forma trágica. Eu estava na festa naquela noite, celebrando o aniversário de um colega
Na última sexta, 27, completaram-se dez anos do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, no qual 242 pessoas perderam a vida de forma trágica. Eu estava na festa naquela noite, celebrando o aniversário de um colega. Eu e um amigo não estávamos longe da saída quando o empurra-empurra começou. O primeiro pensamento era de que havia começado uma briga. Quando o cardume humano já estava próximo da porta, escuto alguém gritar “fogo!”. Olho para trás e vejo um foco de chamas distante, não muito grande.
Já do lado de fora, a ideia de todos era esperar o restante das pessoas saírem. Ninguém tinha ideia da proporção que o fogo tomaria. Contudo, a cada instante, as pessoas saíam com mais dificuldade de respirar, com a fuligem já deixando marcas no corpo. Nós colocávamos as pessoas no estacionamento de um supermercado e utilizávamos nossas camisetas como abano a quem precisasse. Em dado momento, surge da fumaça a namorada de um amigo nosso. Ela estava ofegante. As viaturas da BM recém chegaram e nós aproveitamos para encaminhar algumas pessoas para o hospital nestes veículos. Neste contexto, acompanhei a namorada do meu amigo e passei o restante da madrugada como voluntário no Hospital de Caridade.
Estou vivo e saudável, assim como outros amigos meus que também estavam lá (alguns viveram situação de estar entre a vida e a morte). Dessa forma, o que eu sinto não é a dor de uma perda pessoal, mas uma dor coletiva: a dor de testemunhar a morte de tantos jovens por um conjunto de negligências fatais. O peso do luto nos dias seguintes foi indescritível. Uma dor que parecia infinita sufocava o ar. A atmosfera era tão pesada e triste que era possível agarrá-la com a mão.
Uma década se passou e, até o momento, ninguém foi responsabilizado. A Polícia Civil de Santa Maria havia concluído um inquérito que responsabilizava 28 pessoas pelo incêndio (16 delas criminalmente). Destas, apenas 4 viraram réus. O então prefeito de Santa Maria, Cezar Schimer, cuja responsabilidade foi sugerida no inquérito, deixou a prefeitura sem se pronunciar. Em seguida, tornou-se Secretário de Segurança do então governo Sartori. Em dezembro de 2021, é realizado o maior julgamento da história do estado, somente para ser anulado meses depois.
É importante que, passado este tempo, reconheçamos como país que o incêndio na Kiss não foi uma fatalidade. Fatalidade é ser atingido por um raio quando se está correndo em campo aberto. Quando um pessoas, sejam elas da administração pública, empresários ou músicos, assumem coletivamente riscos para que uma casa noturna se transforme em uma câmara de gás, há responsáveis. É preciso que aprendamos as nossas lições: por memória, por justiça e para que não se repita.