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Colunista 21/06/2017 21:33
Por: Ângelo Savi

A deusa de olhos vendados e o julgamento do TSE

A genialidade dos gregos clássicos criou a deusa Themis, um belo mito que representa a justiça. As lendas são alegoria da realidade e do psiquismo humano e os gregos, que eram bons em tudo (em matemática, filosofia, arquitetura, poesia, estética, escultura, teatro), não poderiam ser diferentes quanto aos mitos. Themis é filha de Urano, o céu, e de Gaia, a terra, e era quem cuidava dos juramentos e das leis. Daí a sua associação com a justiça. É representada com os olhos vendados para demonstrar sua imparcialidade, pois quando julga não vê a quem está julgando. Há uma sutileza na simbologia, pois, se precisa ter os olhos vendados para julgar, mesmo sendo deusa, é porque, se não os tivesse, se deixaria influenciar por quem está sendo julgado.

E esta – a arte da isenção – é a parte mais difícil de um julgamento. Todos têm gostos, antipatias, preferências, afetos, emoções que influem na razão e, portanto, na avaliação que fazemos sobre tudo. E é bom que seja assim, pois de outra forma quem julga seria igual a uma máquina e não humano. Para julgar é preciso usar a razão, mas não se pode deixar de lado a emoção, sem o que não se pode apreender as nuances e o subjetivismo do fato humano.

O TSE julgou uma ação que impugnava a chapa vencedora das eleições presidenciais de 2014 por abuso de poder econômico calçado em propinas, dinheiro havido por meio de corrupção e coisas piores. Como todos sabem, por um resultado de 4 x 3 o tribunal entendeu que não houve abuso, apesar de uma enorme quantidade de provas, principalmente pelas delações premiadas dos executivos da Odebrecht e dos marqueteiros João Santana e Mônica Moura. O raciocínio dos que absolveram foi o de que as provas que não foram indicadas na origem da ação não podiam ser levadas em conta.

Usou-se de uma verdade para justificar uma mentira. É um princípio respeitado e respeitável de direito o de que, quando se propõe uma ação judicial, ela deve conter todas as provas em que se baseia desde o início. O objetivo é de que não haja surpresa para quem se defende. Só que há outro princípio, que é o que permite que “fatos novos” venham a integrar o conjunto de provas, e “fatos novos” são aqueles que eram desconhecidos quando a ação ingressa na justiça. Outro é o do “fato notório”, ou aquele que é de domínio público. E tanto o conhecimento do oceano de dinheiro escuso que sustentou a eleição da chapa Dilma/Temer em 2014 foi novo em relação ao início da ação quanto se tornou notório. Ninguém, a não ser por má-fé ou por insanidade, pode dizer que desconhece agora o que está acontecendo nos desvãos da república. E assim só se pode concluir que os que decidiram pela não cassação traziam seus votos pré-ordenados, independentemente das provas do processo.

O ministro Luiz Fux, um dos três ministros que votaram pela cassação de Temer, chegou a ponto de dizer que o que fundamentou o julgamento foi um artifício e o ministro Gilmar Mendes, que votou pela não cassação, disse que as críticas ao resultado do julgamento são “bobagens”. Parece que, desta vez, Themis julgou com os olhos abertos, tão abertos que viu perfeitamente bem quem estava sendo julgado e por eles se deixou influenciar. E são muitos os influentes, a começar pelo presidente, que nomeou dois dos ministros que o julgaram. PT também não queria que ocorresse a cassação, pois, apesar de ter vendido a ideia de que Dilma foi apeada do poder por um golpe liderado por Temer, a verdade é que ambos foram eleitos juntos. Caso Temer também fosse cassado, não haveria mais como sustentar a falácia de que Dilma fora derrubada por um golpe.

O PSDB, que foi o partido que apresentou a ação de impugnação à chapa Dilma-Temer logo após as eleições de 2014, agora não quer de jeito nenhum que ocorra a cassação, tanto por fazer parte da administração, quanto para se defender na Lava Jato, pois seu então candidato, Aécio Neves, além de outros políticos do partido, também estão enroladíssimos, e contam com o apoio do governo para se safar.

Na decisão do TSE, a razão e a sensibilidade que devem nortear um julgamento foram preteridas. A razão porque a decisão afrontou a massa de provas que demonstravam, sem dúvida, que houve abuso do poder econômico nas eleições, e a sensibilidade porque foi ignorado o clamor da população que não suporta mais os desmandos do governo, políticos e empresários que parasitam a coisa pública. A deusa Themis, além de vendada, também é representada segurando uma balança e uma espada. A balança é o equilíbrio e a espada, a força que a justiça deve ter para fazer cumprir suas decisões. Quem sabe, com tudo que acontece no país, não é chegada a hora da espada?