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Geral 20/12/2019 15:35
Por: Luciano Mallmann

Crônica: Espírito de Natal - um sonho possível

Em meus tempos de criança, não era preciso muito para entrar no clima de Natal. Quando existe predisposição para isso, como era o caso, um simples detalhe, que a muitos passaria despercebido, podia colocar-nos em sintonia com esse encantamento mágico e próprio dos dias que antecedem o fim do ano. Um bom exemplo pode ser a primeira aparição dos vaga-lumes, que, quando entrevistos em sua forma luminosa, lembravam que mais um ano chegava ao fim, mas que, antes disso, ainda havia toda uma preciosa experiência a ser vivenciada, incluindo aí os presentes de Natal. Passada a infância, como se sabe, tudo fica mais difícil. A pergunta que então se coloca é o que muda no espírito natalino, com a consciência de que o Papai Noel precisa ser internalizado, ou seja, é um personagem que precisa ganhar vida através de nós mesmos. Passada a infância, fica às vezes aquela sensação de desterro, condição bem definida pelo poeta Charles Baudelaire, para quem a infância é nossa verdadeira pátria. O resultado disso é que aumenta a responsabilidade: se somos nós os responsáveis pelo Natal, é uma questão de ética sermos nós os agentes do Natal para os que estão ao nosso lado. Mesmo que nos sintamos exilados daqueles primeiros anos e que o tão discutido espírito de Natal fique confinado por lá, em esquinas quase perdidas da infância.

Embora muitos duvidem ou se mostrem céticos quanto a esse tipo de sentimento, que exige uma boa dose de boa vontade e alguma crença, mesmo que seja na humanidade, o tal espírito natalino às vezes nos pega de jeito e nos faz voltar no tempo. Isso é coisa que pode acontecer sem aviso prévio e em momentos em que menos se espera. Falo por experiência própria, pois foi o que aconteceu durante a Cantata de Natal apresentada recentemente por alunos da Escola Christiano Affonso Graeff. Inicialmente, a intenção era apenas fazer uma reportagem como qualquer outra. Quando as apresentações começaram, tudo transcorreu conforme o previsto – até certo ponto. Mas então me pus a observar a inocência nas feições daqueles meninos e meninas, com toda a expectativa em jogo e sentimentos tão intensos que até comprometiam um pouco o que foi exaustivamente ensaiado ao longo de semanas. E então aconteceu. Ao som da bela canção “Natal todo dia”, cantada pelos alunos das séries iniciais, todas as luzes passaram a mostrar mais brilho, do nada as cores se tornaram mais vivas. Literalmente, “um clima de sonho se espalha no ar”. E o Luciano que foi fazer uma simples reportagem não era o mesmo que voltou, pois este acabou por escrever, sobre o evento, um texto em tom altamente entusiástico, profundamente pessoal, sobre a apresentação. Sim: o Natal possui um encantamento todo próprio e constitui um sonho possível.

Sobre momentos como esse, já se disse em outra ocasião: a beleza de certas imagens traz em si uma comoção não raro um tanto dolorosa, por sabermos, mesmo de maneira inconsciente, que elas constituem a exceção, e não a regra vivida no dia a dia. Assim acontece, por exemplo, com tudo que é relacionado à infância e ao Natal. Além disso, as imagens associadas a esses dois temas costumam exigir de nossos sentidos um relaxamento do estado de constante vigília que domina o pensamento, para nos entregarmos sem reservas ao sonho, pois sem ele não há lugar para o encantamento, necessário para que se instale o espírito de Natal. São imagens ou cenas que devem ser respeitadas, se não por crença, ao menos pelo fato de que são poucas as coisas ainda capazes de falar à criança que persiste existindo em nós. Ninguém pede que acreditemos em renas ou em Papai Noel, mas apenas que aceitemos nos abrir ao novo, ao que ele traz de inédito e ao que restou do passado no Natal do ano em curso. Esse passado persiste em forma de recordações, ausências e profundas saudades, representadas por uma ou mais cadeiras vazias à mesa.

É com o sentimento de quem se entrega ao inesperado que, mais uma vez, se retiram da caixa, uma a uma, as bolinhas, as luzes e os demais enfeites para a árvore de Natal, aquela mesma já usada há muitos anos. Sempre é possível que, de um ano para outro, se percebam nela detalhes em que antes não se reparou. Aos poucos tomamos consciência de que, embora a árvore permaneça a mesma, nós é que mudamos. Pois, muito mais do que em outros momentos, Natal é tempo de, sem fechar para balanço, examinar o que se fez e conquistou no ano que termina e o que ficou para realizar nos próximos. É tempo também de observar-nos e descobrir que características se somaram à nossa personalidade e que, ainda no ano passado, não existiam. Se desse modo descobrirmos que evoluímos, teremos motivos para comemorar.

Com essa consciência, decorar uma árvore de Natal ou montar um presépio não pode ser um gesto impensado, feito com distração. É preciso partir do real em direção ao imaginário sem medo da possibilidade de nos perdermos no caminho. E é preciso também concluir o que se iniciou, pois trajetos não percorridos até o fim não levam a lugar algum. E, exatamente porque estamos exilados da nossa infância, é necessário que se repita: com nossos atos, precisamos ser o agente do Natal na vida do outro – esse mesmo que convive conosco no dia a dia. Quando se tem consciência disso, todo sonho passa a pertencer à esfera do possível. Experimente. Basta acessar aquela já mencionada criança que reside, muitas vezes esquecida e silenciada, dentro de cada um de nós.