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Colunista 22/04/2017 15:59
Por: Marcos Rolim

Diante da pós-verdade

(Texto publicado originalmente em Zero Hora)

2016 foi o ano em que os dois maiores símbolos da democracia liberal no mundo, a União Europeia e os Estados Unidos, testemunharam o triunfo do fenômeno que, na ausência de uma definição mais precisa, tem sido identificado como “pós verdade” (como em “The Post-Truth Era: dishonesty and deception in contemporary life”, de Ralph Keyes), algo como um ambiente público onde fatos e evidências se tornam supérfluos. O conceito passou a ser empregado após as vitórias do Brexit e de Trump, com as respectivas perspectivas populistas e demagógicas firmadas a partir da disseminação de mentiras e de slogans concebidos para anestesiar a razão.

A campanha de Trump foi alavancada com notícias falsas nas redes sociais, compartilhadas por seus apoiadores por mais absurdas que fossem. As mentiras do candidato republicano, incluindo estatísticas inventadas por ele, foram apontadas por especialistas e pelos jornalistas mais críticos ao longo da campanha, o que, entretanto, não lhe subtraiu apoio eleitoral. Muitas das propostas de Trump, como a construção de um muro na fronteira com o México a ser pago pelos mexicanos, assinalaram o desrespeito absoluto pela verossimilhança, sintonizando sua plataforma de governo com os preconceitos mais rasos. A par dos seus exageros, Trump não é uma exceção e há discursos similares em vários processos eleitorais. Na vitória do “Não” no plebiscito na Colômbia, por exemplo, o presidente Juan Manuel Santos, reconhecidamente um político conservador, foi apresentado por alguns de seus adversários como “um chavista a serviço de Cuba” e o próprio acordo de paz foi atacado como uma armadilha montada pelos defensores da “ideologia de gênero”, entre outras bobagens. No Brasil, como se sabe, há quem esteja convencido que vivemos em uma república soviética e também quem acredite que Moro é um agente da CIA. Esses e outros delírios transitam com legitimidade nunca antes imaginada e cada insensatez tem uma legião de fiéis.

É certo que a mentira sempre andou de mãos dadas com a política, mas, até há algum tempo, era possível desmascarar o mentiroso na esfera pública pelas possibilidades do debate democrático. Quando as opiniões se formavam em um espaço comum - nas instituições, no parlamento, na imprensa tradicional - havia, também, uma chance - maior ou menor a depender da consistência da cultura democrática - para o constrangimento exercido pelo melhor argumento. O que o nosso mundo permitiu, entretanto, foi o surgimento de uma nova dinâmica na formação do juízo. Nela, as certezas são fabricadas fora do debate e se tornam mesmo blindadas aos argumentos. As sociedades contemporâneas montaram fábricas de simplificações na Internet, onde madraçais de ódio e ignorância são replicados ao infinito. Contingentes expressivos da população, historicamente marginalizados da cultura, se encontraram, então, com parcelas despolitizadas das classes médias que foram progressivamente se desligando das instituições - inclusive da mídia - em bolsões de ressentimento manipulados por discursos intolerantes, à esquerda e à direita. O resultado é um processo cuja radicalidade talvez ainda não tenha sido percebida.

Ocorre que a pós verdade se nutre da democracia para trucidá-la. O fenômeno, uma vez hegemônico, é incompatível com a democracia que, como tenho lembrado, não é o governo da maioria, mas o regime que nos protege da maioria. Para que a pós-verdade triunfe, é preciso que as garantias individuais sejam soterradas, que a ciência seja ignorada e que fenômenos como a violência e a corrupção se transformem em paisagem. O medo e a raiva são parentes próximos e têm sido instrumentalizados politicamente por aqueles para quem a democracia é sobretudo um transtorno. Nessa perspectiva, os intelectuais são desprezíveis, a imprensa é uma ameaça, a política é o espaço dos ladrões e a virtude se encontra em algum lugar mitológico no passado onde “a ordem e o respeito” imperavam. Não por acaso, a pós verdade recebe com fervor as versões mais dogmáticas da religiosidade e estimula o militarismo, esferas tradicionalmente concebidas em termos fortemente hierárquicos e, por definição, hostis ao debate.

No caso brasileiro, a pós verdade ameaça se transformar no “espírito objetivo” ainda com mais facilidade pelo grau de alienação do Poder Público diante dos grandes problemas brasileiros e pela ausência de um projeto nacional. No deserto político e moral que se alastra, aumentam as possibilidades dos discursos messiânicos que, por óbvio, terão na “ordem” sua pedra de toque. É duro dizer, mas nada indica que as coisas não possam piorar.