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Geral 22/01/2020 09:03
Por: Luciano Mallmann

A hora da estrela e o século de Clarice Lispector

  • Em 2020 completam-se os 100 anos de nascimento de Clarice Lispector. Suas obras, porém, guardam o viço dos textos recém-escritos
  • Dirigido por Suzana Amaral, o filme A hora da estrela recebeu o prêmio do júri em Berlim, em 1986; Marcélia Cartaxo levou o Urso de Prata de atriz

Em sua famosa entrevista à TV Cultura, poucos meses antes de sua morte, em 1977, Clarice Lispector anuncia que acabara de escrever uma novela, sobre a qual, porém, prefere não revelar muitos detalhes. Ela se refere à obra como sendo “a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. Mas a história não é sobre isso. É a história de uma miséria sem tamanho e de uma inocência muito pisada”. Quem já leu A hora da estrela, contudo, sabe que a escritora, ao falar sobre o texto que acabou sendo seu testamento literário – e para muitos sua obra-prima -, queria deixar um certo mistério em torno do que se passa nesse pequeno romance que figura entre os principais títulos da literatura brasileira, além de ser mundialmente conhecido. Não é por acaso que A hora da estrela adquiriu esse status. Grande parte do mérito da obra reside em sua capacidade de revelar sempre, a cada leitura, novas camadas de significado, possuindo ao mesmo tempo o dom de manter, a cada vez, a força renovada de uma primeira leitura, no caso, de uma narrativa em que nada está ali como ornamento. Na verdade, diferentes leitores comprovaram que, à medida que se fazem releituras dessa obra, o grau de sua força, bem como de seu poder de impacto, só faz crescer.

A “inocência pisada” de que fala Clarice diz respeito a Macabéa, uma das personagens mais emblemáticas da literatura brasileira. Trata-se de uma nordestina que não se encaixa nos padrões de uma cidade como o Rio de Janeiro, o que, porém, não diz muito: o fato é que essa estranha personagem não se enquadraria em contexto algum que se apresentasse. E é essa sua condição de estrangeira no mundo, além da origem no Nordeste, que a aproxima de sua criadora. De fato, Clarice era frequentemente vista como estrangeira – ou simplesmente estranha -, por mais que ela não cansasse de afirmar reiteradamente sua brasilidade. Quanto a Macabéa, o narrador a descreve como uma pessoa “incompetente para a vida”, sendo A hora da estrela também a história de uma fragilidade sem limites, de alguém simplesmente jogado no mundo sem qualquer explicação. Em grande medida, trata-se da história do próprio desamparo personificado. Por outro lado, existe em Macabéa uma força insuspeitada, uma dimensão próxima do desmedido, que reside na capacidade de colocar em evidência a miséria, a extrema solidão e a estranha e peculiar sina do ser humano no mundo. Essa profunda miséria é explorada e evidenciada aqui com uma brutalidade poucas vezes vista na literatura. Apesar de ser não raras vezes considerada uma autora para poucos e mesmo hermética, Clarice Lispector, em A hora da estrela, pode ser lida sem dificuldades mesmo pelos que não estão familiarizados com a linguagem única de sua prosa. O primeiro encontro de um leitor com Clarice, para ser realmente um encontro, em geral traz a quem a lê um estremecimento, uma espécie de desestruturação. Se não houver esses elementos, é porque o texto não passou da superfície. Porém, quando houver de fato um encontro – ou um confronto -, seguem-se em geral o espanto e a perplexidade do leitor: afinal, quem ousaria imaginar que a linguagem pudesse expressar tanto?

O enredo de A hora da estrela pode ser visto como a via-crúcis de Macabéa, uma alagoana residente no Rio de Janeiro. Descrever essa personagem não é algo muito próximo do possível. Considerá-la radicada em algum lugar seria desconhecer o fundamental a seu respeito. Tendo como profissão o ofício de datilógrafa, as cenas do romance se dividem entre os momentos que a nordestina passa no trabalho, com a colega Glória, os diálogos com o namorado Olímpico, também nordestino, e as horas em casa, quando ouve a Rádio Relógio, que oferece, segundo a própria emissora, “hora certa e cultura”. É através dessa rádio que a personagem, certo dia, ouve a ária “Una furtiva lagrima”, que lhe causa uma enorme comoção na alma e na mente. É através dessa melodia que Macabéa entrevê que pode haver, em algum lugar ignorado, uma existência “mais elevada”. Porém, embora a ária a emocione, ela permanece longe de se sentir uma escolhida. Mas é somente depois que Olímpico abandona Macabéa para namorar Glória que a personagem sente a intensificação de uma dor que lhe parece inexplicável e que ela não sabe definir, que passa a acompanhá-la em todos os momentos. E, quando essa dor é muito profunda, pede a Glória que lhe dê aspirinas. É apenas depois do quarto comprimido para dor que Glória chama a atenção da nordestina: “Aspirina custa dinheiro”. Ao que esta se justifica: “Mas, Glória... Dói!” – referindo-se, sem saber, àquilo que os existencialistas consideravam ser a dor inerente à vida, para a qual os únicos remédios seriam a aceitação do destino e a filosofia. Compadecida ou não, Glória então sugere a Macabéa que procure uma vidente, que, segundo diz a colega, não erra em suas previsões. A moça aceita o conselho. O que se segue são páginas que se elevam à categoria do indescritível, mas em relação às quais se pode usar o mesmo adjetivo já usado acima: são palavras brutais. Tais páginas possuem uma grandiosidade quase cósmica, própria de algo sublime – sem o menor exagero. Para o leitor, a indiferença, no caso em questão, não está na esfera do possível.

“Ninguém escreve como Clarice. Clarice escreve como ninguém”, disse um crítico. Escrever sobre essa escritora fenomenal, mesmo que se tenha certa intimidade com sua obra e sua biografia, é uma tarefa inglória, pois, por maiores que sejam o empenho e a boa vontade, jamais o texto estará à altura da autora. Apesar de não ser fácil discorrer sobre ela, também é inevitável deixar de prever que Clarice será muitas vezes objeto de atenção deste espaço. Mas é verdade que buscar introduzir essa escritora a um possível leitor é uma responsabilidade sem tamanho. Porém, toda tentativa é válida, ainda mais no ano em que se registra a passagem do centenário de uma autora que a cada dia é mais lida, tanto no Brasil como no resto do mundo. Pelo simples fato de ela ser absolutamente necessária. Porém, uma coisa pode ser dita sem medo de errar: da mesma maneira como Clarice dividiu a história da literatura brasileira em antes e depois de seu surgimento, o leitor que se dedicar a ler algum de seus textos – e que não tiver medo de se deixar cativar por suas palavras - também não será o mesmo de antes da leitura. Mesmo que se passe algum tempo entre o momento do contato e o instante em que acontecer a seguinte revelação: ninguém lê impunemente uma obra da tão proclamada esfinge chamada Clarice Lispector. A evolução pessoal, contudo, em se tratando de um dos resultados do contato com a alta literatura, é apenas o mínimo que se pode esperar.