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Colunista 16/09/2019 14:10
Por: Guilherme Brambatti Guzzo

O modo como julgamos o comportamento alheio

Imagine que você está dirigindo o seu carro por uma rodovia quando percebe que há um veículo perigosamente próximo ao seu. Você olha pelo espelho retrovisor e vê que o motorista do carro colado ao seu está falando ao celular, atento a qualquer outra coisa que não seja a estrada.

É provável que você faça um juízo do motorista como uma pessoa imprudente e irresponsável. Talvez você dê um passo a mais e julgue o próprio caráter do sujeito. Afinal, que tipo de pessoa desrespeita o espaço para o veículo da frente e ainda fala ao celular enquanto dirige em uma rodovia?

Você continua dirigindo, atento ao motorista que o segue. E ele ainda está muito próximo ao seu carro, falando ao celular. Você pragueja e lamenta ter que dividir o espaço da estrada com pessoas assim. Algumas centenas de metros adiante, você observa dois automóveis bastante avariados e uma ambulância parados em uma entrada lateral, o que sugere que há pouco ocorreu um acidente no local. Logo após passar pelo trecho, você olha pelo retrovisor e vê que o motorista imprudente que seguia à sua sombra parou próximo aos dois carros. Subitamente, você cogita uma nova explicação para o comportamento do motorista: talvez algum amigo ou familiar dele tenha se envolvido no acidente, e por isso ele estava dirigindo apressadamente; talvez ele estivesse falando ao celular com uma das vítimas do acidente, ou avisando outro familiar do ocorrido.

A situação descrita acima ocorreu comigo há algum tempo. Eu era o motorista indignado com o comportamento do sujeito que vinha atrás de meu veículo. Depois de vê-lo parar no local do que eu imagino ter sido um acidente, mudei rapidamente minha perspectiva sobre o outro motorista, e passei a pensar mais em uma tendência cognitiva humana denominada “erro fundamental de atribuição” (EFA).

O erro fundamental de atribuição normalmente ocorre quando tendemos a superestimar a influência de características intrínsecas a uma pessoa (caráter, personalidade, etc) e a subestimar o poder e o papel das circunstâncias quando explicamos o comportamento de alguém (quando se trata de uma pessoa de quem gostamos que faz algo indevido, costumamos fazer o oposto: supervalorizamos as circunstâncias e não atribuímos o erro ao caráter dela). Voltemos ao exemplo do motorista imprudente: minha reação inicial foi a de qualificá-lo como um mau motorista, um sujeito descuidado e irresponsável. Percebi que eu havia sido vítima do EFA quando tive um vislumbre mais amplo da situação. Continuo sem saber se ele realmente tinha alguma relação com as pessoas envolvidas no acidente; talvez ele tenha parado o carro para poder terminar a conversa com a namorada ao celular, e o fato de que ele estacionou junto aos carros acidentados foi uma coincidência. De qualquer maneira, pensar no EFA faz com que eu dê a ele o benefício da dúvida. O comportamento dele na ocasião foi imprudente, mas não tenho evidências suficientes para atribuir a imprudência que observei a uma falha de caráter ou à sua personalidade. As circunstâncias devem ter contribuído para que ele dirigisse assim.

Em seu livro “Mindware”, o psicólogo Richard Nisbett afirma que a dificuldade que temos em reconhecer a força de contextos e situações e, consequentemente, a tendência em superestimar a importância de traços pessoais (personalidade, caráter, etc.) é um dos erros mais perniciosos que cometemos quando pensamos sobre as atitudes de outras pessoas. E, às vezes, as consequências do EFA são bastante sérias.

Ao discutirem o EFA em sua obra “The wisest one in the room”, Thomas Gilovich e Lee Ross (o psicólogo que cunhou o termo “erro fundamental de atribuição”) escrevem sobre os moradores que não deixaram Nova Orleans depois do furacão Katrina em 2005, ou melhor, sobre o que outras pessoas pensaram sobre aquelas que não saíram da cidade após ordens de evacuação do local. Funcionários de órgãos governamentais lamentaram o fato de que muitas pessoas permaneceram em Nova Orleans, e afirmaram que essa havia sido uma “escolha” delas. No entanto, como Gilovich e Ross lembram, as pessoas que não deixaram a cidade eram em sua maioria pobres, não tinham acesso fácil a carros, não tinham grandes redes de contato para buscar apoio e tinham menos acesso a notícias do que aquelas que seguiram a recomendação governamental.

Mesmo assim, quando profissionais que haviam trabalhado na cidade logo após a passagem do furacão foram questionados sobre as palavras que atribuiriam às pessoas que haviam saído e às que haviam ficado em Nova Orleans, as respostas normalmente continham termos como “inteligente”, “responsável” e “independente” para caracterizar as primeiras, e “tolo”, “teimoso” e “preguiçoso” para definir aquelas que continuaram na cidade. Ao pensar na história dos cidadãos que se mantiveram em Nova Orleans depois do desastre e do mau juízo que muitas pessoas fizeram deles, também lembro de quantas vezes vemos ou ouvimos afirmações parecidas em nosso dia a dia e que podem se transformar em estereótipos: “Fulano é preguiçoso e não gosta de trabalhar, como todo mundo que mora na região dele”; “não dá para dar oportunidade para gente irresponsável como ele”; “ele não consegue boas notas na escola porque é burro”; “ela não se interessa por ciências porque é uma pessoa ignorante”, e assim por diante.

O erro fundamental de atribuição ocorre com muita frequência em nossa vida cotidiana. Eu mesmo, enquanto elaborava este texto, me vi vítima dele quando não consegui conter um “que sujeito preguiçoso” em voz baixa, ao ver um motorista fazendo um atalho pelo meio do estacionamento de um supermercado. Poucos segundos depois, comecei a pensar em explicações alternativas: o que teria feito o homem atravessar o estacionamento daquela maneira? Pode ser preguiça, mas também pressa para buscar um familiar, ou para ir para casa jantar depois de um dia complicado. Alternativas à “preguiça” abundam, e sem conhecer o sujeito e a situação, não é possível fazer qualquer julgamento razoavelmente preciso sobre seu comportamento não muito civilizado.

Apesar do incidente no estacionamento do supermercado, tenho pensado bastante no erro fundamental de atribuição e, com isso, tentado evitar fazer juízos rápidos e superficiais sobre o comportamento das pessoas à minha volta, especialmente quando elas fazem coisas inadequadas (o que nem sempre é possível). Faço um esforço para não ver a mãe que grita com o filho na farmácia como uma pessoa desequilibrada: ela pode estar tendo um dia ruim, estar bastante atrasada para o trabalho, pode ter perdido o emprego, pode ter brigado com familiares, etc. Isso não significa que ela deva gritar com o filho, obviamente. O que ela fez continua errado e condenável, mas provavelmente não é fruto de um desvio de caráter ou algo parecido, e também não é necessariamente um comportamento que reflete o tipo de pessoa que ela normalmente é.

Como escapar do erro fundamental de atribuição? Daniel Stalder, um psicólogo americano que dedicou um livro ao assunto (“The power of context”), afirma que a tarefa não é simples, dado que o EFA normalmente ocorre sem que tenhamos consciência dele. Stalder cita 14 maneiras de reduzir o EFA, além da mais óbvia: aprender sobre essa tendência cognitiva. A que eu tento aplicar a mim mesmo é a de ir mais devagar com meus juízos. Essa é, aliás, uma técnica que tenho usado para outros tópicos além do comportamento das pessoas: é normalmente bastante útil pensar um pouco mais sobre um assunto antes de tomar posição sobre ele.

“Você já reparou que todo mundo que dirige mais devagar do que você é um idiota, e que todo mundo que dirige mais rápido do que você é um louco?”[1] Se sim, vá com calma e pense de novo: você pode estar sendo vítima do erro fundamental de atribuição.

(Texto publicado no blog “Nas Trilhas da Razão”)

(https://nastrilhasdarazao.wordpress.com/2019/03/11/voce-ja-reparou-que-todo-mundo-que-dirige-mais-rapido-do-que-voce-e-um-louco/)

 

[1] Frase atribuída ao humorista George Carlin, citada por Stalder (2018, p. 33).