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Colunista 31/01/2018 16:44
Por: Arthur Lersch Mallmann

Sobre contar histórias

Semana passada fui a um cartório acompanhando uns amigos. Já não me recordava quando havia pisado em um desses pela última vez, e talvez tenha sido por isso que o ambiente tenha causado esse efeito inesperado de estranhamento em mim. É realmente impressionante como em tais lugares se faz presente aquela atmosfera característica de segurança, previsibilidade e racionalidade fria que só um cartório consegue sintetizar. Na volta, já de saída, olhei para trás e li os escritos na porta de vidro que haviam passado completamente despercebidos por mim quando entrei: “nascimento, casamento, óbito”. Esse letreiro simples ficou na minha cabeça. Não parecia ser um mero anúncio de alguns dos serviços ali prestados. Colocados juntos, pareciam refletir a trajetória de uma vida inteira traduzida para a linguagem burocrática. Um possível ciclo de vida contado sem vida alguma. Já em casa, minha mente reunia pensamentos dispersos a respeito da questão. Lembrei do meu tio compartilhando comigo, não sem uma certa tristeza, a dificuldade que ele estava tendo para obter informações sobre antepassados mais antigos. A exceção eram estas três informações pontuais: quando nasceu, com quem casou e quando morreu. O que sonhou, o que os fez sofrer, o que os fez sorrir, disso não restou nada. Esse tipo de história só existe se for contada, senão é como se nunca tivesse existido. E cartórios não se interessam por elas.

Essas lacunas me consternam porque narrativas não são meras fontes de entretenimento. Afinal, nós não apenas gostamos de narrativas: nós precisamos delas. Contar e ouvir histórias são atividades que estão no âmago de uma necessidade um tanto enigmática, mas profundamente humana. As narrativas conseguem atribuir significado a coisas que, caso fossem contadas por um cartório, não teriam qualquer sentido. O que sobraria do futebol, por exemplo, o esporte mais popular do planeta, se não houvesse a capacidade de unir dramas e glórias em uma narrativa contínua? Se alguém perguntasse ao cartório, o futebol seria descrito como aquele evento estranho no qual pessoas tentam colocar a bola para além da linha entre as traves. Esse processo de controle e previsão da vida, observado na linguagem de cartório, por exemplo, foi descrito pelo sociólogo Max Weber como “desencantamento do mundo” – e é para esta direção que a modernidade parecia rumar num caminho sem volta. Persistem teimosas, no entanto, angústias para as quais nem a ciência e nem a burocracia possuem respostas, e nessa esfera as narrativas fazem lar com bases sólidas. São questões que todos nós enfrentamos, sem exceção. Indagações sobre como viver nossas vidas, como lidar com o sofrimento, como enfrentar nossos medos, entre outras, as quais aparecem inseridas, de modo implícito ou explícito, em narrativas diversas. Precisamos de histórias para preservar o que há de mais comum entre nós: a experiência de viver uma vida humana.

Neste dia 27 de janeiro completaram-se cinco anos da madrugada em que um incêndio, tão terrível quanto estúpido, vitimou 242 jovens na boate Kiss. É quase uma morte para cada mil habitantes da cidade de Santa Maria. Jovens que sonharam, sofreram e sorriram, mas corriam o risco real de virarem histórias de cartório. Nome, data de nascimento, data de óbito. Ciclos de vida sem vida alguma. Um livro escrito por Daniela Arbex, entretanto, está contando a história destas pessoas. O presente texto, vale notar, não se trata de uma propaganda. Acontece que a comoção causada pelo lançamento de “Todo dia a mesma noite” entre amigos e familiares das vítimas é um incrível testemunho do poder da narrativa. Além de eventos de promoção com uma carga emocional intensa, tendo como local o Teatro Treze de Maio, um outdoor de agradecimento aos autores chegou a ser erguido pelas associações de parentes e amigos das vítimas. A sensação é de que Daniela fez o resgate que não foi possível naquela fatídica noite. Narrando suas histórias, todas essas 242 pessoas deixam de ser o que de fato nunca foram: meros números ou acontecimentos esparsos. Passam a ser vividos e revividos em um ato de comunhão que fazemos como espécie desde tempos imemoriais, contando histórias e experienciando o que foi viver, de fato, a vida de cada um deles. Não mais “nascimento, casamento, óbito”; mas sonhos, sofrimentos e sorrisos. Vida.