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Opinião 10/04/2017 10:08
Por: Luciano Mallmann

Preparando a Páscoa de cada dia

Comparar a Páscoa de hoje com as dos anos passados pode levar a um inventário do que ficou para trás

  • Se há algo que se pode dizer dos símbolos é o fato de dispensarem palavras. Com o ovo, não é diferente
  • Na credibilidade junto aos pequenos, a crença no Coelhinho tem breve duração

A respeito da Páscoa e os 40 dias da Quaresma, bem como a tudo que se refere a esse período, não deixa de ser oportuno interrogar se a memória de determinadas datas está fragilizada ou se um passado nem tão remoto se encontra, de fato, morto e silenciado, embora, de maneira inegável, ainda viva intensamente em milhares de pensamentos que o mundo atual conduz tacitamente a calar - da mesma forma como silencia acerca de muitos outros. Já se cogitou que a Páscoa seria uma daquelas datas cuja magia está restrita à infância, assim como em grande medida o Natal. Mas é possível demonstrar que a data, assim como tantas outras, pelo fato de serem carregadas de diferentes sentidos, têm significado em todos os períodos da vida, embora estes variem com o passar dos anos. Quem cresceu tendo como pano de fundo as décadas de 70 e 80 é possível que ainda lembre de festejos pascais em muitos aspectos avessos aos de hoje, e essas diferenças são tão expressivas que até é de se perguntar se os costumes correspondem ao mesmo período.  


Pode-se começar o inventário dessas perdas irremediáveis pelo caráter artesanal que predominava nas Páscoas de outros tempos. Vivemos num tempo em que os grandes ovos de chocolate tomaram conta do mercado, alguns deles capazes até de assustar uma criança mais desavisada, e enormes coelhos também de chocolate. A isso contrapõe-se a singeleza que havia outrora, na forma de delicadas cascas de ovos de galinha, devidamente lavadas, secas e guardadas com um orifício em uma de suas extremidades. Às vésperas do aniversário da ressurreição de Cristo, a criatividade, a cada ano, era testada em seus limites: como decorar os ovos de uma maneira nova, e que materiais utilizar para isso? Quem levasse a sério o desafio poderia deparar-se com um verdadeiro dilema pré-existencial, correndo o risco de passar a Páscoa sem ter doces para comer, com pena de estragar os ovos a cuja decoração se havia dedicado tanto empenho. Pois havia casos em que o invólucro parecia valer mais que o próprio doce.


O domingo de Páscoa era apenas o ápice de uma longa preparação interior que durava quarenta dias, período em que predominavam a oração e o silêncio. Ao longo dessas semanas, sobretudo na Sexta-Feira da Paixão, eram proibidos às crianças determinados tipos de brincadeiras, pois devia imperar o respeito religioso, demonstrado pelo silêncio, tido na conta de sagrado, e quem, por inadvertido que fosse, o esquecesse, poderia incorrer em pecado mortal.  É verdade que manter silêncio sobre certos assuntos levava o pensamento a imaginar coisas a respeito de aspectos, digamos, bem menos nobres de determinadas questões, mas mesmo assim muito pertinentes. Como exemplo, outro enigma pré-existencial: desde quando coelhos botam ovos? E ainda mais de chocolate! Percebe-se, tendo essa questão como exemplo, as vantagens que o bom velhinho, morando no Polo Norte, tem sobre o Coelhinho da Páscoa em se tratando de credibilidade junto aos pequenos. Porém, malgrado o esforço de alguns pais, havia crianças que não chegavam a cair nessa de coelhinho, pois não raro a ilusão era desfeita bastante cedo, por religiosas que, eufóricas e incapazes de guardar tal segredo, tinham pouca paciência de esperar para divulgar a novíssima boa nova: "Jesus ressuscitou por vocês! Sejam gratos e se comportem. E observem o silêncio da Sexta-Feira Santa!". Junto às instruções para colocar em prática na Sexta-Feira Santa, estava incluída uma regra específica sobre aparentar ares de tristeza sem necessariamente estar triste - mas, à força de buscar aparentar, em poucas horas a tristeza se tornava real. Apesar de tudo, isso também constituía parte essencial daqueles dias, se não se quisesse ter um ninho minguado no domingo de Páscoa.

A imagem de uma estrutura simples, quase sem cor, é capaz de conter em si o mistério da vida
O tempo passa, amadurece-se se um pouco e descobre-se, talvez pela primeira vez, que os tempos mudam os costumes. Pois, quando se é um jovem adulto, já se tem alguma maturidade para observar o quanto as crianças são resistentes a qualquer tipo de fantasia - ainda mais quando ela possui algum vínculo com a espiritualidade. E fica mais uma vez evidenciada a vantagem de Papai Noel, com o aspecto de distanciamento no tempo e no espaço que o caracterizam, em relação ao pobre e desacreditado coelhinho e seus ovos, enormes, de chocolate. Para quem desenvolveu um mínimo de senso crítico, a data talvez já tenha perdido grande parte do significado, restando como seu principal atributo apenas o reencontro com familiares mais distantes, oportunidades sempre especiais em qualquer época do ano. Quanto aos doces, resta observar a alegria dos pequenos e embarcar, ao menos um pouco, na sua felicidade. Apesar de tudo, e mesmo quando já se sabe da existência de exemplares cujos valores chegam, nos dias de hoje, a dezenas de milhões de dólares, como os fabricados entre 1885 e 1917 por Peter Carl Fabergé por encomenda dos czares da Rússia, o ovo está lá, assim como sempre esteve, incólume, imponente, em toda parte. Mas, misteriosamente, as casquinhas pintadas desapareceram, deixando o protagonismo para o chocolate, sem mágoas nem rivalidades. Apenas com um estranhamento para quem vê os costumes se perderem de uma geração a outra.
Mas é nos primeiros anos de maturidade que os aspectos simbólicos da Páscoa parecem ganhar especial relevo, como o coelho, por exemplo, representando a alta capacidade reprodutiva. Já quanto aos ovos, é preciso reconhecer que seu significado não se limita à religião. Além da vida nova e da renovação que representa para os cristãos, o ovo já havia sido interpretado de inúmeras maneiras por outros povos mesmo antes do surgimento do Cristianismo. Mais que o relicário de uma nova vida, o ovo é o símbolo imemorial de nascimento e criação. Regeneração, remissão e novos tempos constam também entre os significados mais difundidos.


Passadas mais algumas décadas, mesmo que a maturidade, no seu aspecto temporal, já tenha trabalhado, e muito, sobre nossa aparência, não se chegou a desenvolver de forma especial aquilo que, durante a vida inteira, se esperou como sendo a tão propagada sabedoria. Houve um filósofo francês, também um tanto esquecido, que mencionou que passamos a vida inteira esperando a sabedoria, acreditando que ela virá com a idade. Porém, os anos passam e continuamos os mesmos de antes. Em todo caso, o próprio fato de saber que de fato não há muito mais a esperar, além do que um poeta apaixonadamente chamou de "a eterna novidade do mundo" e da vida, já constitui o início de alguma sabedoria. 


Nesse período, não há mais lugar para coelhinhos, nem para o bom velhinho vindo do Polo Norte com suas renas atreladas ao trenó. Eles cederam lugar à lucidez e a um bom ânimo perante a vida, que jamais dispensa o sonho. Não obstante isso, neste período o ovo atingiu o auge da sua capacidade de significar os mais distintos elementos. Pois, em todas os anos, ele sempre esteve lá, como se intocado pelo passar de tantos anos, de tantas décadas. É por isso que o ovo é um de símbolos mais respeitados da eternidade e do que ainda está por vir. Os alquimistas viam nessa estrutura frágil e nua o símbolo de algo que é muito questionado, mas que, de outra maneira, seria impossível exemplificar visualmente: o mistério da vida, em todos os seus aspectos. Quando chega a esse patamar, é melhor que ele não seja de chocolate, muito menos um Fabergé. Pode ser o mais simples possível, sem decoração alguma, nu como veio ao mundo ou, por sua carga de mistério, como o mundo veio a ele. Se há algo que pode ser ressaltado em relação aos símbolos, é o fato de dispensarem as palavras. E neste caso não é diferente. E esse frágil e singelo objeto atinge aqui o seu simbolismo derradeiro e, talvez, o mais profundo: o fato de que, na natureza, tudo se transforma. Mesmo que tudo se encontre no imortal e insondável silêncio cósmico. No máximo, uma simples imagem sem cor, como o único rascunho perfeito no universo, a significar eternamente o enigma da vida: o ovo.