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Meio sculo da tragdia que enlutou Candelria
26 de setembro de 1959. Foi neste dia que Candelria enfrentou sua maior tragdia. A maior e a pior. Em hora imprecisa, moradores prximos do rio Pardo - na cidade, arroio Molha Grande, e no interior, Costa do Rio e Rebentona, principalmente - foram surpreendidos por uma imensido de gua. Tratava-se da enchente mais violenta de que se tem notcia at hoje. Muito se perdeu. Casas foram destrudas e arrastadas com seus moradores; lavouras, animais e paiis simplesmente desapareceram em meio correnteza. Os mais atingidos foram os ribeirinhos. Maioria deles morreu soterrada pelo desabamento de encostas. Conta-se que na regio de Serra Velha, interior de Sobradinho, nas proximidades da divisa com a Costa do Rio, 40 pessoas morreram.
Tudo ocorreu durante aquela madrugada. H exatos 50 anos. Em poucas horas, cenas nunca presenciadas deixaram um rastro de pavor e destruio. Alguns sobreviventes da catstrofe ainda recordam o episdio. Tambm sofrem. Lamentam. Neste meio sculo ps-enchente, a Folha descreve trechos contados por quem testemunhou de perto a "agressividade" das guas, o resgate das vtimas, o socorro aos desabrigados, o enterro dos mortos e o corre-corre dos administradores da poca. Tudo isso num tempo de poucos recursos, tanto financeiros quanto estruturais. A nica abundncia vista era de solidariedade - caracterstica at ento evidenciada na comunidade -, j que inmeras pessoas dividiram seu tempo para prestar auxlio.
A exemplo do que foi veiculado anteriormente (em 31 de dezembro de 1999 e 25 de julho de 2001), a edio de hoje, 2, reproduz depoimentos verdicos de quem escapou da morte. Entre os entrevistados est uma das vtimas da enchente. Alm de testemunhar com os prprios olhos - ainda na adolescncia - tamanha fatalidade, ela registrou o que viu num poema de 26 versos. O texto foi escrito quase um ano depois do ocorrido e chegou a ser vendido devido ao impacto causado pelo "dilvio". Pode-se dizer que este um patrimnio da histria do municpio e uma homenagem pstuma aos cerca de 100 mortos daquela enchente.
O susto diante das guas
Os dias que antecederam aquela noite eram mornos. Clima atpico para a poca. Talvez fosse o prenncio de alguma coisa. E de fato foi. Quando fez esta aposta, se abanando com o chapu durante o descanso da lida na lavoura, seu Valdevino, ento com 44 anos, estava certo. Horas depois (no se sabe quantas) ele despertaria do sono para enfrentar um pesadelo. Ao escutar estrondos, levantou da cama e viu que se tratava de uma avalanche de gua. E vinha numa fora inexplicvel carregando o que estivesse pela frente. Mais que depressa chamou a mulher e se agarrou s oraes. Ana Isabel tinha l seus 39 anos e, ao contrrio dele, era um tanto assustada. A ela coube acordar a filha Odete, que estava com 11 anos.
- "Te acorda que ns vamos morrer tudo", exclamou apavorada. A menina, no entanto, sonhava com seu tio Jovino, que a chamava para contar uma histria, quando acordou num sobressalto. Sem entender o que se passava, foi com a me at a cozinha, onde seu pai rezava pedindo a Deus que os protegesse. Valdevino era um homem religioso e de muita f. J no restava muito que fazer. Em poucos minutos, a gua encostou no assoalho da casa. S deu tempo de pegarem um rdio de pilhas, alguns mantimentos e sarem rumo a um galpo que ficava perto da moradia, no lado aposto da estrada. Era um local seguro e mais alto. Na casa ficaram todos os pertences da famlia e um lampio aceso em cima da mesa.
- "Vou deixar aceso. Se a luz se apagar porque a casa foi levada embora", disse Valdevino. O medo de perder tudo na correnteza se justificava porque as guas j tinham arrancado um p de salso e um chiqueiro aos fundos da moradia. Porcos e galinhas haviam sido "engolidos" pela gua.
Passava das duas horas da manh, quando se abrigaram no galpo. E ali ficaram at clarear o dia. Amanheceu e a casa, por sorte, ainda estava no lugar. A enchente no havia, sequer, alagado os mveis porque no passou da altura do assoalho. Ao redor era um estrago s. J chegavam os comentrios de que vizinhos tinham sido arrastados com casa e tudo pela enchente. Possivelmente restariam poucos sobreviventes.
Relembrando estas cenas, como se fosse num filme, Odete Lopes Steffanello - hoje com 61 anos - contou Folha que o desmoronamento de cerros e encostas, causado pelo grande volume de chuvas, aumentou a fora da gua. "O que tinha pela frente levava tudo", acrescentou.
Ela lembra, com preciso, dos vizinhos que morreram soterrados. Uma das famlias era a de Antnio Slvio Moreira, que perdeu a mulher grvida, trs filhos e a sogra. "Trs crianas conseguiram a escapar porque saram de casa em tempo. Outras duas e a que estava por nascer morreram", diz. "Ele (Antnio) foi arrastado pela gua com mais um filho, mas ficou preso a um umbuzeiro. O fogo lenha que estava na casa deles os prensou contra a rvore e, por isso, sobreviveram. J a mulher foi encontrada morta em cima do fogo. Mais adiante estava o corpo da sogra e um filho (o quarto), que igualmente resistiu", finaliza.
CHOCANTE - Odete calcula que numa extenso de seis quilmetros ali prximos tenham morrido umas 28 pessoas. Ela destaca cenas chocantes, que foram presenciadas durante o resgate dos corpos. "Em outra casa prxima, a do Jovelino Carlos da Silva, moravam 19 pessoas. 17 delas morreram. Os nicos sobreviventes foram crianas - um recm-nascido que foi encontrado mamando no seio da me (j morta) e uma menina que segurava um tero nas mos", descreve.
Os dias se passaram e as lembranas ficaram guardadas em sua memria. No ano seguinte, mais precisamente no dia 5 de julho, Odete finalizava um poema com 26 versos - escrito com uma pena tinteiro - contando a tragdia que presenciou. Ela citou o nome dos seus conhecidos, das pessoas que gostava e fez uma relao de tudo que havia se perdido. "Queria contar e desabafar o que tinha acontecido para que no ficasse esquecido no tempo", comenta. Na poca, inmeras cpias foram impressas e vendidas. Ainda hoje h quem pea o texto a ela. Prova de que se trata de um patrimnio da histria de Candelria.
MAIS - Os pais de Odete, Valdevino e Ana Isabel, moravam na Costa do Rio em 1959. L permaneceram at 1977 e depois vieram para cidade. Ambos esto falecidos.
Quando a cidade recebeu a notcia
As guas que devastaram a Costa do Rio e a Rebentona tambm arrasaram casas prximas ao arroio Molha Grande. O rio Pardo encheu tanto que a correnteza chegou quase em frente ao antigo colgio agrcola (hoje Lepage). A notcia foi recebida na cidade pelo ento prefeito Christiano Affonso Graeff. Ele havia assumido o cargo em maro daquele ano, depois que o prefeito e o vice renunciaram. Era, com certeza, a tarefa mais difcil que enfrentaria em seis meses de governo. Assim que foi informado do que ocorria o ex-prefeito foi at a casa da filha Lorena Helena para pedir ajuda do genro Jos Pery. Ela lembra como se fosse hoje. "Era de madrugada quando meu pai nos chamou. Ele, minha me (Alcery) e meu marido saram apavorados. Eu no pude ir porque estava com as crianas pequenas", diz. "Eles s voltaram de l no outro dia, perto do meio-dia. Meu pai se entregou de corpo e alma para socorrer aquela gente. Foram dias muito difceis. Naquela poca no se tinha recursos como agora", relata.
Uma das primeiras determinaes de Christiano Affonso Graeff foi abrigar as vtimas no colgio agrcola. "Minha me foi para l e comeou a organizar as refeies para as famlias. Acho que por mais de 14 dias as pessoas ficaram abrigadas. Muitos colaboraram em campanhas para arrecadar comida e roupa para os desabrigados", completa. Alm do corre-corre e das medidas que precisava adotar, numa verdadeira briga contra o relgio, o ento prefeito levou para a sua casa uma menina de sete anos que havia perdido a me na enchente. "Ela ficou aos nossos cuidados por uns dois anos e depois o pai dela a levou embora", conta Lorena.
Uma equipe da prefeitura teve que construir as dezenas de caixes para enterrar os mortos. Voluntrios trabalharam incansavelmente para isso. Os corpos eram deixados no colgio agrcola e, por falta de tempo, eram encomendados e sepultados imediatamente. J o trabalho de reconstruo das casas se estendeu por cerca de dois ou trs meses. "Foi uma tristeza pra todo mundo. Muitas pontes caram. O rio mudou completamente depois daquela enchente", conta Lorena.
VISITA - Em meio ao trabalho de resgate de vivos e mortos, a comunidade recebia a visita do governador da poca Leonel Brizola. Ele fora comunicado do episdio e se deslocou a Candelria num helicptero. Tambm teria sobrevoado a regio para verificar os estragos. No h informaes concretas sobre o auxlio que o municpio recebeu do governo do Estado em funo da enchente de 1959. Comenta-se, apenas, que Brizola anunciou a doao de uma rea para a prefeitura instalar os desabrigados. O objetivo era construir um loteamento para as famlias que perderam suas casas. Foi a que teve origem o bairro Ewaldo Prass - atualmente, o mais populoso de Candelria.
MAIS - Christiano Affonso Graeff comandou o Executivo entre maro e dezembro de 1959. Tambm assumiu funes de vereador e presidente da Cmara. Foi advogado, contabilista, tesoureiro da municipalidade e integrou a comisso emancipacionista de Candelria.
Ele faleceu aos 69 anos, vtima de um infarto. Sua filha mais nova, Lorena Helena Graeff Seckler tem, hoje, 76 anos.
O socorro aos desabrigados
Entre as inmeras pessoas que prestaram ajuda aos desabrigados estavam Darci Florindo da Silva e Zeni Rosa Machado, hoje com 72 e 75 anos, respectivamente. Ele era auxiliar de cozinha do colgio agrcola e morava na chcara pertencente ao educandrio, localizada fora da cidade. Em funo da enchente lembra que ficou ilhado por uns dois dias at poder auxiliar no atendimento e na busca das vtimas. Zeni trabalhava no posto de sade como tcnico de laboratrio e estava diretamente envolvida com a preveno de doenas. Darci recorda que eram muitas pessoas abrigadas no colgio. "A maioria tinha s a roupa do corpo. Foi coisa muito horrvel. Teve gente que chegou a ficar mais de um ms l", adianta. "Ajudei a procurar os corpos na proximidade da Costa do Rio, mas no encontrei", finaliza. Conforme ele, muitos corpos foram achados dois ou trs dias depois da enchente cados por cima das rvores.
Alm de fornecer roupas e alimentos, a prefeitura cedia medicamentos aos desabrigados. A prioridade era a preveno de possveis doenas contradas em funo da enchente. Para tanto, eram disponibilizadas vacinas. Zeni conta que alm de aplicar a medicao, ajudava na organizao dos corpos. "Ajudei a lavar os mortos porque eram deixados ali no Lepage cheios de lama. Depois era feita a cerimnia de encomendao e sepultamento", explica. O que mais lhe marcou em meio tragdia foi a numerosa mortandade de pessoas e as crianas que choravam de fome. Conforme ela, a maior quantidade de mortos era de adultos. O marido de Zeni, o falecido Edilo Machado, que trabalhava como fiscal sanitrio tambm colaborou muito naquele perodo.
REPERCUSSO - O saldo de mortos deixado pela enchente, assim como a destruio de inmeras propriedades, foi comentado em todo Estado e tambm fora dele. Zeni lembra, neste sentido, que a TV Tupi de So Paulo esteve em Candelria naquela poca para gravar cenas contando a tragdia. "Vieram para contar o que tava acontecendo. O professor Guinter Lohman, de Candelria, que estava morando no Paran, assistiu tudo pela televiso", afirma.
Um mdico e centenas de doentes
Na catstrofe de 1959, Candelria tinha l seus 34 anos de emancipao. Tudo era limitado. Recursos financeiros eram poucos. Mdicos idem. O nico profissional (ou um dos) que havia naquela poca atendia centenas de pacientes. O servio era feito pelo clnico geral Ruy Mathias Strassburger, 82 anos, hoje residente em Porto Alegre. A esposa dele, Janete - com 75 anos atualmente, conversou por telefone com a reportagem da Folha e disse que ele fazia de tudo. "O Ruy atendeu sozinho todo aquele povo. O consultrio ficava dentro do hospital. A medicao no faltava naquela poca. Alimentao tambm nunca faltou para os desabrigados", revela. "Ele era o nico mdico da cidade e chegava a atender at 100 pessoas num dia", acrescenta.
Os nmeros de pessoas que ficaram feridas ou que precisaram de internao hospitalar em funo da enchente so desconhecidos. Janete lembra, apenas, que foi dada uma ateno para aes preventivas a fim de evitar doenas futuras. As vacinas foram muito utilizadas. A leptospirose (transmitida pela urina de rato), por exemplo, era uma preocupao.
O casal morou em Candelria por durante 33 anos. Em 1985, eles mudaram para Porto Alegre, quando Ruy j estava aposentado, para cuidarem dos netos.
O luto que permanece
A enchente jamais ser esquecida entre a comunidade. Os descendentes daqueles que acompanharam tudo de perto igualmente guardam o fato na lembrana - mesmo que de maneira superficial. Nos dias chuvosos, como os do ms de setembro, e que parecem no ter fim, o sentimento de luto ressurge. A crena de que a chuvarada aumenta prximo ao Dia de So Miguel (29 de setembro) igualmente lembrada. H 50 anos, de fato, uma tragdia cercou a data. Hoje, resta torcer para que nenhuma catstrofe acontea. Tambm preciso agradecer a todos aqueles que ajudaram nesta hora de dificuldade. Embora a Folha tenha exposto apenas uma mostra do que foi aquela enchente, fica esta homenagem s centenas de colaboradores.