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Colunista 14/01/2019 08:34
Por: Guilherme Brambatti Guzzo

Convicção demais, razões de menos

Creio que quase todos os motoristas brasileiros devem conhecer a expressão “indústria da multa”. Desses, alguns já devem ter se considerado vítimas dela. Em poucas palavras, a chamada “indústria da multa” diz respeito a uma suposta fúria arrecadatória de governos com multas de trânsito, o que leva à instalação de radares “escondidos” em estradas, à presença de fiscais em pontos “estratégicos” para multar motoristas desavisados e à aplicação de multas para condutores que não cometeram nenhuma infração. Mas será que é razoável afirmarmos que existe uma “indústria da multa” nas cidades e estradas brasileiras?

Antes de mais nada, quero deixar claro que tenho ciência da existência de exageros e distorções na aplicação de penalidades a alguns motoristas (uma breve pesquisa no Google, por exemplo, vai mostrar casos de fiscais de trânsito que foram instruídos a cumprir uma determinada meta em multas diárias). Mas a questão que quero discutir é um pouco mais complexa: temos evidência de que o número de multas aplicadas aos motoristas brasileiros é excessivo e injusto?

Eu nunca havia pensado sobre o tema até ler o artigo “Os números da ‘indústria da multa’”, do professor Ely José de Mattos, publicado no jornal Zero Hora de 11/12 de março de 2017. Ely fez aquilo que qualquer pessoa realmente interessada em conhecer sobre um assunto deve fazer: ir atrás das evidências relacionadas a ele e analisá-las. No artigo, são apresentados os dados referentes ao trânsito de Porto Alegre em 2016, e a conclusão de Ely é a de que a chamada “indústria da multa” é uma falácia.

Em 2016, foram feitas quase 564 mil autuações de trânsito na capital gaúcha. É muito? Não, se considerarmos o total de veículos registrados nessa cidade (829 mil), e também o fato de que muitos carros de outras localidades circulam por Porto Alegre diariamente. Mesmo se ficarmos somente com os veículos da frota de POA, teríamos uma média de pouco mais de meia multa por veículo por ano. Outro dado interessante: foram registradas somente três multas diárias para uma infração bastante comum, não dar preferência ao pedestre na faixa de segurança. Convenhamos, é impossível que sejam somente três motoristas a não respeitarem a faixa de segurança para pedestres em um dia na capital. E pensemos em quantos motoristas deixam de usar o cinto de segurança, quantos atravessam o sinal vermelho, quantos dirigem falando ao celular, quantos estacionam em local proibido, quantos bebem antes de dirigir, e assim por diante. São poucas as multas comparadas à quantidade de infrações cometidas diariamente.

Ely finaliza seu texto afirmando que os números das multas em Porto Alegre são modestos, o que significa que não existe uma “indústria da multa na cidade”. Então, por que a ideia de “indústria da multa” é tão disseminada entre nós?

Eu suspeito que seja porque não costumamos fazer o mesmo que o autor do artigo da Zero Hora, isto é, não nos damos ao trabalho de investigar com profundidade muitas das coisas que ouvimos ou lemos no cotidiano. Nos apegamos às nossas impressões sobre muitos assuntos, e não temos a noção de que seria importante examinar essas impressões para saber se elas, de fato, são confiáveis.

Creio que muitas discussões, intrigas e brigas que vemos hoje na internet seriam evitadas se nós prestássemos atenção a uma regra básica: “ajuste a força de suas crenças à qualidade das evidências disponíveis para elas”. Se houver boas razões para acreditar em uma determinada conclusão, então podemos abraçá-la com alguma confiança; se ela não se sustenta em boas razões, então devemos reduzir a confiança que temos na razoabilidade dela. E, antes disso, é fundamental que façamos o trabalho de investigação, o que demanda buscar informações relevantes para um dado tema em questão. Tudo isso para não cairmos na tentação de sentir convicção demais em assuntos sobre os quais temos razões de menos.

É possível, obviamente, contestar a conclusão de que a “indústria da multa” não existe. Mas isso só pode ser feito a partir da apresentação e análise de dados confiáveis, e não de nossas impressões ou sentimentos sobre o assunto. O mesmo vale para uma série de temas com os quais nos defrontamos cotidianamente: facilitar o acesso a armas torna uma sociedade mais segura? O consumo de transgênicos é perigoso para a saúde das pessoas? Legalizar o consumo de drogas como a maconha provoca a redução da violência associada ao tráfico? Para cada uma dessas questões, estaremos em uma melhor situação para formar crenças razoáveis se nos propusermos a ir além de nossas intuições e preconcepções, consultando a posição do consenso de especialistas na área – quando possível – e calibrando a força de nosso ponto de vista de acordo com a qualidade das razões relevantes.

Em “Sobre ter certeza” (Editora Blucher, 2017) o neurocientista americano Robert Burton explica que a convicção é um tipo de sentimento que surge de maneira inconsciente, independentemente de nossas faculdades racionais. Isso faz com que frequentemente tenhamos a sensação de que estamos certos, mesmo quando estamos referendando nossas intuições mal fundamentadas. É por isso que precisamos moderar a confiança que temos em nossas habilidades de avaliar o mundo à nossa volta, e também sermos humildes o suficiente para expor nossas crenças a algum tipo de exame externo independente antes de considerarmos ignorante a pessoa que discorda de nós. Afinal, ela pode estar certa.