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Colunista 20/04/2017 13:49
Por: Wagner Azevedo

22 de abril: os descobrimentos e encobrimentos

No dia 22 de abril faz-se lembrança da “Descoberta do Brasil”. O termo “descoberta” há tempo está problematizado, mesmo que nas escolas e na mídia este se repita muito. Essas comemorações “brasileiras” vêm junto ao “Dia do Índio”, no 19 de abril. Celebrações destas datas podem ser importantíssimas, independente das revisões sobres as datas, a memória coletiva adequou-se a essas representações. O “porém” está na reprodução de fatores excludentes daquilo que promove uma consciência histórica diante dos fatos.

A celebração dos primeiros europeus no território hoje brasileiro implica necessariamente em fazer memória daqueles e daquelas que já estavam. Entretanto, para se fazer memória, necessita-se saber que existiu. Porém, desde 1492 um incontável, verdadeiramente incontável número de agrupamentos originários do continente foi exterminado, com suas cosmologias e cosmovisões. Por consequência, reduz-se uma pluralidade de costumes, de idiomas, crenças, filosofias e organizações sociais a um modelo que sopra estrondosamente do Norte. Não cabe a nós vitimizar ou infantilizar as relações entre os povos originários e o homem europeu, as distinções e semelhanças, tanto internas quanto externas, coexistem, não para relativizar ou justificar o massacre europeu, porém, parafraseando Euclides da Cunha – em outro contexto, similar –, “o jagunço [o não-civilizado] conhecia o brilho da civilização [moderna] pelas descargas das baionetas”. Organizações tão complexas quanto os modelos civilizacionais que se prega para uma adequada ordem e progresso social, ou para a redenção de almas desconhecidas por Deus e de Deus, coexistiam não pacificamente, e não brincando de roda. Entretanto, independente de valores positivados ou negativados à história desses povos, invisibilizou-se, com morte, extermínio, pela civilização europeia moderna construções possíveis além do “normal”.

A “Descoberta do Brasil” bem em verdade encobriu com uma mortalha a vida e a história originária do continente. Até mesmo a busca pela “origem” perpassa por uma dita “racionalidade moderna” aos padrões do mesmo que conquistaram. Para Dussel, e alguns outros autores latino-americanos, o ego cogito, o “o penso logo existo”, só pode existir pelo ego conquiro, o homem que conquistou. A síntese de dois mundos não se faz possível deste lado do Atlântico quando a antítese daquele que se denominou natureza está apagada. A síntese do processo dito evolutivo das sociedades latino-americanas está subjugada à compreensão europeia dos fatos. A forma, o método de análise do ser latino-americano, do ser indígena, do ser tupi, kaiowá, kaingang, inca e tanto outros milhares de “seres” está subjugado a não-Ser o que é ou acredita(va) poder ser. Por outro lado, o homem branco conquistador faz a síntese criando a imagem romantizada e positivada daquilo que destruiu, por ora criando a imagem das rodas e cocares, por ora determinando as relações que deduz da memória que o mesmo criou do chamado “índio”. Ademais da cruel idolatria dos seus egos positivados: o orgulho do desenvolvimento aliado à destruição, à morte, que hoje até mesmo é bandeira: ordem e progresso.

Portanto, comemoremos os dias 19 e 22 de abril: com a memória desses fatos. Não esqueçamos a dominação dos seres, a imposição de valores e de crenças. Deus chegou na América somente no século 15, trazendo consigo a culpa e o pecado. A redenção salvífica chegou ainda mais tarde, quando Bartolomé de Las Casas, em 1550, convenceu a Igreja de que os índios também possuíam alma. Infelizmente, esse esforço de Las Casas apenas condenou duplamente os povos indígenas: além da morte, estavam suscetíveis ao inferno. Fazer essa memória é desnaturalizar o que impomos como natural, destituir a ordem e o progresso do Reino de Anhangá – no sincretismo tupinambá e cristão, o Reino do Diabo-Velho, que destrói a natureza. Para além de rodas e cocares há muito para reafirmar e reconhecer do Brasil não coberto pela mortalha europeia.